O falcão perde uma asa: desastre militar no Iraque

O jornalista francês Artur Lepic, especialista em questões energéticas e militares, publicou na Rede Voltaire este levantamento de fatos pouco divulgados sobre a situação dos combates no Iraque. Com base nela, ele avança uma explicação provocante

Os eleitores estadunidenses usaram as eleições do meio do mandato presidencial para condenar a conduta da administração Bush no Iraque. A condenação não incide sobre a opção pela guerra, que foi aprovada massivamente tanto por democratas como por republicanos e serve de pedestal ap “bipartidarismo renovado”. Não incide tampouco sobre o custo humanitário da guerra para o povo iraquiano. A imprensa estadunidense silenciou sobre os estudos demográficos avaliando em 650 mil os mortos civis desde o início da invasão ango-saxã. A condenação incide exclusivamente sobre o custo, financeiro e humano, da operação para os EUA.



Mesmo que a mídia dominante minimize os fatos e se abstenha de fornecer um panorama da situação, os testemunhos dos veteranos circulam. Sobretudo, os eleitores são indiretamente informados sobre a amplitude do desastre através da revolta dos oficiais superiores, que nada tem de um apelo pacifista.

As operações da Resistência iraquiana crescem em número e em precisão. Uma nova fase dos combates se afigura com o abandono de províncias inteiras nas mãos dos insurretos, e derrotas estratégicas sem precedentes sofridas pela coalizão.
Tudo isso prognostica uma iminente derrocada “à vietnamita”?



Sete mortos/dia, como no Vietnã



Em praticamente todo o Iraque, um fustigamento constante e onipresente alveja as forças da coalizão. Em parte alguma o inimigo pode se sentir a salvo. O ritmo diário dos ataques está hoje no seu nível mais elevado, de 90 pelo menos, com um total oficial de 103 soldados estadunidenses mortos em outubro de 2006, cifra comparável à mais elevada até hoje, de 134, em novembro de 2004. Somando-se os mortos que não entram nas estatísticas oficiais (soldados estrangeiros alistados na esperança de obter cidadania estadunidense, mercenários e outros “contratados civis”), o total se aproxima da média oficial de sete “GIs” mortos a cada dia, tal como no auge da Guerra do Vietnã, em 1968.



A ponta de iceberg que se lê na mídia dominante, ou seja, os atentados contra civis, atribuidos principalmente a esquadrões da morte ou acertos de contas mafiosos, não representa senão 30% do total de ataques, segundo os relatórios de referência, inclusive os do Pentágono.



Combates e balanços contraditórios



Em certas províncias, como al-Anbar, onde a Resistência ocupa o grosso do terreno, equipes de atiradores recrutados às claras e bem pagos alvejam os soldados isolados, longe dos combates abertos, enquanto as emboscadas com explosivos atingem todo dia os veículos militares nas estradas.



O “Estado paralelo” também levou a melhor em pelo menos quatro outras províncias. Ali as tropas dos EUA e o exército de colaboração apenas constatam que não conseguiram conquistar corações e mentes, que estão com o inimigo.



Em outros lugares ocorre um símbolo manifesto de como evolui a situação militar: assiste-se a uma verdadeira guerra de posições em que se visa alvos estratégicos precisos, no seio das tropas de ocupação ou de colaboração. Os subúrbios de Bagdá são teatro de combates com armas leves, entre patrulhas da coalizão ou da colaboração e batalhões de resistentes. São combates que amiúde dão lugar a balanços oficiais contraditórios. Graças a informações e coordenadas fornecidas por elementos da Resistência, infiltrados no seio da máquina de ocupação, elementos-chave do arsenal do ocupante são alvo de ataques massivos e com certeira pontaria.



O grande ataque à base de Dora



Na noite de 10 de outubro, uma importante base estadunidense perto do distrito de Dora, ao sul de Bagdá, a Forward Operating Base Falcon, foi atacada com morteiros e foguetes. A base abrigava não só um importante contingente de soldados, engajados na operação Together Forward, mas também o mais importante depósito de munições da coalizão em todo o país.



Bombas, obuses de tanques. ogivas de artilharia e munições para armas leves explodiram e pegaram fogo durante a noite inteira, iluminando o céu de Bagdá e provocando uma barulheira infernal, escutada até bem longe da cidade. 



Muitas TVs, assim como câmeramen militares amadores, registraram o ataque. Foi muito revelador ouvir um jornalista da BBC informar os telespectadores que oficialmente o incêndio estava sob controle, enquanto no mesmo momento se via a imagem de novas explosões.



Nos dias que se seguiram, a imprensa árabe revelou que a investigação seguia a pista de tradutores iraquianos a serviço da coalizão, que teriam transmitido à Resistência as coordenadas sobre os depósitos de munição, para facilitar o ataque. Informou também que o tiro de barragem da Resistência havia impedido as tropas da coalizão de dominar mais rapidamente o incêndio.



A amplitude das esplosões não deixa dúvidas quanto às perdas materiais e humanas. No dia seguinte, os comunicados oficiais se referiam a apenas alguns feridos, mas nenhuma morte. Já os comunicados da Resistência afirmavam ter contado nove aviões de transporte retirando as vítimas, estimadas poressa fonte em mais de 300.



Seja como for, é certo que esse êxito estratégico da Resistência vibrou um golpe nas finanças do ocupante, talvez da ordem de um bilhão de dólares, segundo o Ministério do Interior iraquiano, e na moral das tropas.



Hilary Clinton muda de idéia



A reação das instituições estadunidenses a esses revezes estratégicos recentes não demorou. Nos últimos dias, novos protestos internos ecoaram no Pentágono. Na segunda-feira, 6 de novembro, na véspera das eleições de meio-mandato nos EUA, quatro jornais militares lidos pelo grosso das tropas pediam a cabeça do então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld.



O campo democrata não hesitou então em operar uma guinada de 180 graus. Hilary Clinton (senadora por Nova York) passou a propor a retirada das tropas do Iraque seguindo um calendário preciso, depois de ter prometido fazer melhor que Bush, enviando mais tropas ao combate.



As tropas de ocupação combatem contra uma parcela populacional em expansão, pois apóia a Resistência cada vez mais, ma medida em que sofre represálias cegas. Isso permite que o “contra-Estado” se desenvolva progressivamente, estimulando a Resistência a ativar a fase três da teoria da guerrilha de Mao Tsetung, ou seja, a guerra de posições.



Tais desenvolvimentos foram exaustivamente antecipados e compreendidos pelo próprio dogerno estadunidense. Documentos desclassificados recentemente mostram que simulações efetuadas em 1999 estimavam em 400 mil o número de soldados necessário para controlar o Iraque — e ainda assim não afastavam o risco de caos.
Até que ponto tal situação é sustentável por parte da coalizão que ocupa o Iraque? Uma retirada rápida e metódica do país deixaria a descoberto um governo fantoche muito vulnerável.  E tornaria inúteis as enormes despezas já feitas na instalação de bases militares permanentes e na “garantia” das segundas maiores reservas de petróleo do mundo.



Adiante, unidos no erro



A demissão do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, longe de por fim a esta situação, marca uma nova etapa, desta vez irreversível, no comprometimento estadunidense. Ao contrário do que muitos pensam, o conflito entre Rumsfeld e seu estado-maior não girava em torno da manutenção ou retirada das tropas, mas dos recursos empregados. O secretário da Defesa, um ex-executivo de multinacional, foi a última pessoa razoável a mostrar preocupação com o inchaço do orçamento militar. Seu sucessor só poderá ceder à pressão do pessoal da Defesa e da opinião pública, por carta branca para as forças armadas.



O chamamento por um “bipartidarismo renovado”, ou seja, uma gestão de união nacional republicano-democrata, manifesta o desejo consensual da classe dirigente: prosseguir, unida, no erro.



Assistiremos então, provavelmente, a uma reprodução da mesma estratégia do final da aventura vietnamita: um complexo industrial-militar que reclama “um pacotaço”; um Departamento de Estado que tenta transferir a carga para as tropas aliadas (como já faz com êxito no Afeganistão) e “iraquianizar” o conflito; e um Departamento do Tesouro que tenta evitar a falência. Uma fuga para adiante cujo desfecho trágico é garantido.