Eros Grau viu “sabor de totalitarismo” na cláusula de barreira
“Uma lei com sabor de totalitarismo. Bem ao gosto dos que apoiaram a cassação de mandatos e de registro de partido político” durante a ditadura, foi como o ministro Eros Grau classificou a cláusula de barreira, ao ler seu voto no Supremo Tribunal Federal
Publicado 11/12/2006 15:30
“Da cláusula de barreira diz Marcello Cerqueira, em exposição proferida em congresso de Direito Constitucional realizado no mês de novembro que passou: “Essa cláusula (barreira, exclusão, desempenho), abolida com a redemocratização, em 1985, agora retorna (aparentemente agravada) na Lei 9.096/95 (…) Introduz-se, no Direito Constitucional, norma de exceção em face da qual está previamente censurada a liberdade partidária, a possibilidade de expressão de correntes e pensamentos políticos que não se enquadrem na ‘propalada’ regra iníqua que implica negar seu aperfeiçoamento em uma sociedade complexa e diferenciada. É como um jardineiro que impede que flores novas desabrochem e se poupe de apenas regar antigas ervas, que podem ser daninhas”.
Essa cláusula, designa-a o eminente professor como “corredor da morte das minorias políticas”.
A Constituição do Brasil afirma como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o pluralismo político [art. 1º, V]. Por outro lado, os partidos políticos com representação no Congresso Nacional são titulares de legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança coletivo e ação direta de inconstitucionalidade [arts. 5º, LXX e 103, VIII]. Todos os partidos políticos, todos eles, sem distinção de nenhuma ordem, desde que estejam representados no Congresso Nacional.
Essa lei na ADI impugnada faz porém distinções entre os partidos, tratando-os de modo diferenciado. Isso de modo a entrar em testilhas com o disposto no artigo 17 e §§ da Constituição. De sorte a agravar mesmo o direito de associação, objeto de garantias estipuladas nos incisos XVII, XVIII e XIX do artigo 5º da Constituição.
A lei, de modo oblíquo, reduz a representatividade dos deputados eleitos por determinados partidos, como que cassando não apenas parcela de seus deveres de representação, mas ainda — o que é mais grave — parcela dos direitos políticos dos cidadãos e das cidadãs que os elegeram. Para ela, o voto direto a que respeita o artigo 14 da Constituição do Brasil não tem valor igual para todos. Uma lei com sabor de totalitarismo. Bem ao gosto dos que apoiaram a cassação de mandatos e de registro de partido político; bem ao gosto dos que, ao tempo da ditadura, contra ela não assumiram nenhum gesto senão o de apontar com o dedo. Não apenas silenciaram, delataram…
Uma lei tão adversa à totalidade que a Constituição é, tão adversa a esta totalidade que o mesmo partido político pelo qual poderá ter sido eleito o Chefe do Poder Executivo será, sob a incidência de suas regras, menos representativo do que os demais partidos no âmbito interno do Parlamento.
Múltipla e desabridamente inconstitucional, essa lei afronta o princípio da igualdade de chances ou oportunidades, corolário do princípio da igualdade. Pois é evidente que seria inútil assegurar-se a igualdade de condições na disputa eleitoral se não se assegurasse a igualdade de condições no exercício de seus mandatos pelos eleitos.
Discorrendo sobre as maiorias e o despotismo da maioria, sobre o absurdo de uma maioria fixada meramente por via matemática e estatística, Carl Schmitt afirma a necessidade de pressupor-se, sempre, um princípio de justiça material, se não quisermos ver desmoronar de uma só feita todo o sistema da legalidade. Esse princípio é o da igualdade de “chance” para alcançar aquela maioria, aberta a todas as opiniões, a todas as tendências e a todos os movimentos concebíveis. Sem esse princípio, a matemática das maiorias seria um jogo grotesco, um insolente escárnio. Quem obtivesse a primeira maioria a deteria para sempre — seu poder seria permanente.
Quase à mesma época Herman Heller afirmava, significativamente, que o parlamentarismo descansa de modo muito especial em um conteúdo comum de vontade que integra todas as oposições. Pois essa unidade política deve realizar-se, como sua essência requer, em condições da maior liberdade e igualdade de possibilidades de atuação política para todos os grupos.
Anoto ainda aqui, parenteticamente, que há vinte anos sobre esse mesmo princípio escreveu o Ministro Gilmar Mendes, em artigo publicado na RDP número 82, então discorrendo sobre a jurisprudência constitucional alemã.
A igualdade de chance em verdade não acresce sentido inovador à igualdade. Antes, pelo contrário, desdobra-se da sua própria raiz. Igualdade significando isonomia não apenas entre partidos, porém, sobretudo, entre eleitores. Isonomia com a qual a Lei n. 9.096/95 é de todo incompatível.
Julgo procedente a ADI.”
* Até esta segunda-feira (11) o sítio do STF (http://www.stf.gov.br) ainda não fornecia a íntegra do voto do relator do julgamento, ministro Ministro Marco Aurélio Mello, que fundamentou a decisão unânime; assim que seja possível o Vermelho reproduzirá na íntegra este importante documento de defesa da liberdade partidária no país