Especialistas criticam ofensiva de radiodifusores contra regulação
Ao contrário do que alegam emissoras, especialistas afirmam que a obrigatoriedade em cumprir horários para a transmissão de programas não tolhe a liberdade de expressão dos autores. Para eles, ao Estado cabe o papel regulador.
Publicado 09/02/2007 21:54
por Jonas Valente – Carta Maior
Nos últimos dias as emissoras Globo e SBT passaram a veicular anúncio no qual várias mãos colocadas sobre os olhos de uma criança vão sendo retiradas até que estes fiquem descobertos, momento em que uma voz ressalta os pais como únicos responsáveis pela avaliação do conteúdo a ser veiculado pela televisão. Por trás da peça está a disputa pelo conteúdo da portaria que será publicada pelo Ministério da Justiça estabelecendo a aplicação das regras para a implantação dos critérios de classificação indicativa de programas de televisão (leia matéria “Conteúdo audiovisual será submetido a novas regras”). A norma pode tornar obrigatório o cumprimento da indicação de horários para a transmissão de programas, medida duramente criticada pelos donos de emissoras.
Nesta quarta-feira (7), matéria de quase uma página no jornal O Globo – braço impresso das organizações Globo – engrossou a ofensiva dos radiodifusores veiculando críticas de roteiristas, autores de novelas e de dirigentes de emissoras de televisão. Entre os pontos de discordância estão a responsabilidade do Estado pela classificação e a obrigatoriedade do cumprimento dela por parte das televisões. Na avaliação dos entrevistados, a concretização deste sistema tolheria a liberdade criativa e de expressão dos autores de obras audiovisuais e se constituiria como a volta da censura no país. Walcyr Carrasco, novelista da Globo, apresentou críticas mais duras, afirmando ao jornal que “a arte lida com elementos subjetivos, tentar colocar regras é limitar a liberdade de expressão”.
Já o diretor da Central Globo de Comunicações, Luis Erlanger, admitiu a importância da classificação, mas defendeu seu caráter exclusivamente indicativo. “Achamos legítima a existência da classificação indicativa. O importante é que isso não seja transformado em censura e que a escolha democrática fique com os pais. Uma classificação indicativa é ferramenta de informação fundamental para que os pais possam exercer seu direito e dever intransferível de educar os filhos”, afirmou ao jornal de sua organização. Erlanger finaliza a matéria defendendo o argumento do “poder democrático do controle remoto”, segundo o qual a liberdade na comunicação estaria na possibilidade de escolha entre os canais disponíveis – que, a tomar como exemplo o caso da TV aberta, são pouco mais de seis.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo nesta sexta (9), os psicólogos Ana Olmos e Ricardo Moretzohn e o cientista político Guilherme Canela rebateram os argumentos dos radiodifusores. Os autores do texto usam exemplos de outros países, como Alemanha, EUA, Reino Unido e Suécia, que possuem regras de indicação de classificação dos conteúdos veiculados sem que isso seja entendido como ato censório. “Nesses países, é central ressaltar, o processo classificatório não gera polêmica. Primeiro, porque é amplamente aceito o fato de que regular os radiodifusores detentores de uma concessão pública – e, portanto, uma espécie de inquilino do espectro eletromagnético, propriedade de cidadãos e cidadãs contribuintes – é um dever e um direito do Estado”.
Para o professor de comunicação da USP e integrante da Campanha Ética na TV, Laurindo Lalo Leal Filho, o Estado é o mais legítimo ente para realizar este tipo de regulação, pois é o único que possui capacidade de arbítrio frente aos diferentes interesses em disputa. “Há o interesse da sociedade, na educação das crianças, nos valores da cidadania, e há o interesse particularista, mercadológico das emissoras. E este interesse, se não se estabelecer uma regulação sobre ele, se torna universal”, avalia. “Como a classificação é só indicativa e não implica censura ou interferência sobre o conteúdo da programação ou dos filmes, não vejo problema em o Estado fazê-la”, concorda a psicóloga Maria Rita Kehl.
Voz isolada entre as emissoras, a MTV, ligada ao grupo Abril, tomou posição favorável à classificação indicativa e contra o discurso fácil da censura ao veicular peça no intervalo da sua programação. Em sua coluna também no jornal Folha de S.Paulo, o jornalista Daniel Castro reproduz o texto do spot. Entre outras coisas, a emissora diz que “a televisão brasileira já fez coisas geniais, mas também colocou diversas porcarias no ar” porque “alguns profissionais são capazes de qualquer coisa na luta pela audiência”. Por conta disso, defende uma “classificação indicativa de horários” porque os “veículos de comunicação são os maiores responsáveis pelo conteúdo que exibem”.
A Constituição Federal garante ao Estado este poder também a partir da noção de que é seu dever proteger as crianças de conteúdos inadequados a que estas possam ser expostas. E a presença deste tipo de mensagens, segundo Lalo, seria cada vez mais comum frente à busca desenfreada por audiência que abre para isso até espaço para o apelo fácil através de conteúdos eróticos e violentos. O professor também critica a tese de que somente os pais seriam os responsáveis pela decisão acerca de qual conteúdo seus filhos podem assistir. “Esta campanha da Globo procura transferir do concessionário para o pai a responsabilidade do que vai para o ar. A responsabilidade é de quem veicula o programa. Eles colocam qualquer lixo para dar audiência e dizem ‘é você que resolve em casa’”, diz.
Os autores do artigo publicado na Folha também repelem esta argumentação, sobretudo se for levado em conta que os pais estão cada vez menos presentes em casa e que a televisão é cada vez mais presente na vida das crianças. Segundo pesquisas, o público infantil fica mais de três horas diárias na frente do aparelho. Vale lembrar que o show Tardes Quentes, comandado por João Kléber na Rede TV e transmitido diariamente às 17h, foi processado em novembro de 2005 por desrespeito à dignidade humana. O programa realizava pegadinhas nas quais o constrangimento e a discriminação por raça, cor, orientação sexual, regionalidade e gênero eram freqüentes, num horário em que a maioria dos pais não estão em casa para orientar as crianças.
O intuito das regras de classificação indicativa apresentadas pelo Ministério da Justiça é exatamente garantir que programas considerados inadequados para a faixa etária de 10 a 18 anos sejam veiculados a partir das 19h, horário razoável para se supor a presença dos pais em casa, podendo então permitir ou não o acesso de seus filhos àqueles conteúdos. Para a Maria Rita Kehl, este é requisito indispensável para que haja uma recepção mais consciente dos conteúdos.
“A presença dos pais ao lado da criança quando ela vai a um filme faz toda a diferença. A possibilidade de conversar com eles, para a criança, faz toda a diferença na capacidade que ela terá de assimilar e julgar o conteúdo dos filmes, não apenas no sentido moral, mas também no de sua compreensão da realidade social”, analisa.
Para Gustavo Gindre, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e editor do Boletim Prometheus, publicação especializada em comunicação, outro problema sério no discurso crítico à classificação indicativa e sua aplicação obrigatória é a acusação de censura. Este instrumento, explica, se dá a priori, enquanto a classificação indicativa acontece a posteriori. A emissora pode veicular os programas fora da faixa horária, mas depois será cobrada a adequá-los à classificação caso não responda a isso.
Expectativa
Procurada pela Carta Maior, a assessoria do Ministério da Justiça afirmou que não poderia adiantar o conteúdo da portaria e nem quando esta deve ser publicada. Mas informações dizem que a norma pode sair nos próximos dias. Falta apenas um acordo entre o Ministério e as emissoras de TV, que pode avançar após diversas reuniões realizadas esta semana. Resta saber se a pressão interna e externa surtirá efeito ou se os critérios construídos após diversas audiências públicas e seminários abertos à participação da sociedade civil e dos próprios radiodifusores serão mantidos.
Fonte: Agência Carta Maior