Opção pela elite: Como o papa quer salvar a igreja católica
Por Marília de Camargo César (Valor)
Como o manda-chuva de uma multinacional pesada e burocrática, que enfrenta quebra do monopólio, perda de participação de mercado, lucros declinantes e sérios problemas de recursos humanos, o papa Bento XVI
Publicado 30/03/2007 18:25
Não que o navio esteja afundando. Mas não é de hoje que está entrando água no barco da Igreja Católica Apostólica Romana na região. No Brasil, a situação é mais dramática. O rebanho encolhe ao ritmo de 600 mil católicos a menos por ano, o que dá 6 milhões de ovelhas na última década. Num território que já foi 95% católico, o porcentual hoje é de 73% e cairá para 65% até 2010, segundo projeção do antropólogo Pierre Sanchis, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O movimento é global e mais acentuado na América Latina. Chile, Guatemala, Honduras, Costa Rica e, mais recentemente, até a Argentina são exemplos de nações que estão aderindo ao cristianismo de resultados, menos hierárquico, mais pragmático e muito mais barulhento, ensinado pelos evangélicos pentecostais. Estudiosos como o sociólogo David Martin, professor emérito da London School of Economics (LSE), já falam numa “explosão protestante” na América Latina. O teólogo Faustino Teixeira menciona uma “revolução pentecostal”. O papa vai precisar de mais fé.
A conversão de católicos para o protestantismo é apenas um dos motivos da inquietação na Igreja Romana. É cada vez mais comum entre os brasileiros assumir uma fé sem vínculos a instituições. É o que Teixeira chama de “crer sem pertencer”. “Uma desinstitucionalização crescente”, afirma o teólogo, que coordena o Programa de Pós-Graduação de Ciência da Religião na Universidade de Juiz de Fora (MG). É diferente, por exemplo, do que ocorre com os católicos na Europa. Ali, eles estão simplesmente abandonando a religião rumo ao secularismo.
Outro pesadelo é a ascensão do islã. Os muçulmanos já formam a segunda força religiosa do globo, com 1,3 bilhão de praticantes, 22% da população mundial. Mas esse não é um problema com o qual Bento XVI tenha de se preocupar nesta visita ao Brasil. Não por enquanto.
Diagnóstico e remédio
As razões que levam cada vez mais fiéis a se afastar da paróquia são diversas e estão sendo estudadas por sociólogos, antropólogos, teólogos e cientistas políticos brasileiros e estrangeiros. Secularização, migração do campo para a cidade, o fenômeno da mídia de massas, todos são fatores apontados como influências importantes.
Mas a própria igreja ainda não tem um bom diagnóstico sobre o assunto. Segundo Fernando Altemeyer, professor e ouvidor da PUC-SP, a quinta conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), que será aberta por Bento XVI em Aparecida (SP), terá como missão produzir esse raio X.
“Não dá para dizer que [a crise] é só por uma questão de linguagem ou só por uma questão de estrutura de atendimento pastoral. A igreja precisa descobrir qual órgão está oferecendo esse mal-estar. É interno ou externo? É questão de marketing, de identidade? Depois do diagnóstico, então se discute qual é o melhor remédio”, argumenta Altemeyer.
“Não há dúvida de que Bento XVI modelará, com seus pronunciamentos [no Celam], o perfil da Igreja Católica na América Latina. O quanto haverá de rejuvenescê-la ou envelhecê-la, o tempo dirá”, comenta Frei Betto em artigo recente para o site Vida Acadêmica.
Os católicos podem não ter ainda um quadro claro sobre a doença que acomete a sua igreja. Mas os pesquisadores têm boas pistas do que está acontecendo. Os movimentos migratórios parecem mesmo estar no centro do problema. A urbanização crescente tira o migrante de um Brasil rural e católico e o leva para as periferias cada vez mais pentecostais das grandes cidades.
Ali, em bairros muito pobres como Nova Iguaçu (RJ) e Ermelino Matarazzo (SP), onde a mão do Estado inexiste, o recém-chegado vai precisar de uma boa medida de fé para enfrentar a lei do mais forte, a violência, o tráfico de drogas e o desemprego. Ele chega católico e, ao perder o vínculo com a família e as tradições, entra em contato com uma estrutura mais ágil que o ensina a ler a Bíblia, a ter disciplina e lhe oferece apoio social imediato.
“A Igreja Católica é lenta para acompanhar esse movimento”, explica o cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC-Rio. Um dos autores do melhor mapeamento das religiões no Brasil, o “Atlas da Filiação Religiosa”, e o mais recente “Religião e Sociedade em Capitais Brasileiras”, Jacob vê um elemento de discriminação nessa tendência. “O fenômeno pentecostal não está associado à pobreza, mas à segregação. A pessoa não se converte por ser pobre, mas por ser segregada”, acredita.
Ele prova a sua tese apontando para mapas dos Estados e das grandes capitais brasileiras. Em todos, observa-se o predomínio de evangélicos habitando os bairros mais pobres das periferias, enquanto nas regiões centrais prevalecem os católicos romanos. Nas regiões de fronteira agrícola isso é ainda mais marcante. Não é por acaso, acredita Jacob, que a Campanha da Fraternidade deste ano destaca a Amazônia. Segundo o atlas, a maior perda de influência católica entre 1991 e 2000 deu-se nas regiões Norte e Centro-Oeste, notadamente nas cidades de Rio Branco, com quase 20% de redução de fiéis, Porto Velho (-18,5% ) e Manaus (-16,5%).
O estudo revela ainda que a renda é mais alta e a pele é mais clara onde moram os católicos. “A igreja que diz ter feito a opção preferencial pelos pobres vê os pobres fazer a opção preferencial pelos pentecostais”, resume Jacob. Procurada pela reportagem do Valor, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não quis se manifestar.
A igreja pentecostal é uma ramificação protestante que busca as manifestações sobrenaturais do Espírito Santo, como o falar línguas estranhas e as revelações proféticas. Já os neopentecostais somam a isso um discurso focado na prosperidade material.
Línguas de fogo
Há quem veja com bons olhos essa mudança. David Martin, da London School of Economics, afirma que essa conversão tem um impacto psicológico, econômico e social inquestionavelmente positivo. Para o sociólogo, autor de “Tongues of Fire: The Explosion of Protestantism in Latin America” (Línguas de Fogo: A Explosão do Protestantismo na América Latina – Oxford: Basil Blackwell, 1990) e de “Pentecostalism: the World Their Parish” (Pentecostalismo: O Mundo, Sua Paróquia – Blackwell Publishing – 2002), essas igrejas estão ajudando a reconstruir uma sociedade em que o indivíduo volta a ter importância.
Os novos “irmãos” ajudam a pessoa a ser responsável por si mesma, o que a torna mais confiável, ao ensinar que é possível chegar a Deus sem a intermediação do padre ou de santos e ao desafiá-la a abandonar vícios, a pagar dívidas e a restabelecer laços familiares quebrados. “Em pequenos grupos, eles assumem a assistência mútua e se encarregam da própria salvação, no sentido material, sem a necessidade de intermediação da igreja. Eles estão fazendo o trabalho por si mesmos.”
Não há indicadores econômicos que consolidem essa visão, embora inúmeras teses antropológicas estejam sendo escritas sobre esses nichos pentecostais. Mas Martin garante que o impacto é grande. Só por desistir do que ele chama de “típico fim de semana de homem”, com cachaça, futebol e mulher, “a renda do sujeito praticamente já dobra”.
Jacob, da PUC-Rio, desconfia que esse ambiente favoreça os políticos oportunistas, os narcotraficantes e os pastores inescrupulosos. Martin contemporiza. “Não existe nenhuma grande organização que sobreviva sem dinheiro. Essas megaigrejas realmente são megaempreendedoras religiosas administradas em bases comerciais. Você dá uma boa quantia de dinheiro para a igreja, mas do ponto de vista da igreja isso é parte do investimento. Você investe e tem o seu dinheiro de volta em melhorias no seu estilo de vida.”, afirma o pesquisador da LSE.
Teixeira, da Universidade de Juiz de Fora, que é católico, também tem uma opinião favorável. “Essas pessoas que vivem no fundo do poço encontram nos núcleos pentecostais uma forma de afirmação da sua dignidade e cidadania.” Segundo ele, estudos antropológicos apontam como resultados dessa integração em pequenos grupos a reconstrução das famílias, a libertação da dependência alcoólica e de drogas. “Cria-se um espaço de escuta do sofrimento e de acolhida, com a força do Espírito”, afirma.
Nem todos os evangélicos estão comemorando. Crítico do movimento neopentecostal e do evangelho “light”, o teólogo, escritor e pastor batista Ed René Kivitz acredita que muito em breve os evangélicos vão experimentar o que os católicos estão provando hoje, ou seja, a fuga dos bancos da igreja.
Kivitz, que dirige a Galilea Consultoria e Treinamento – um centro de debates sobre aspectos atuais da espiritualidade -, questiona a qualidade e a profundidade da experiência oferecida por pastores que atraem a ovelha com promessas de equilíbrio financeiro sem ensinar também os princípios mais importantes da doutrina cristã, como a auto-negação e a humildade.
A crítica que os evangélicos faziam aos católicos antigamente, de que tinham uma fé sem consistência porque não estudavam a Bíblia, volta-se agora para eles mesmos. Vemos surgir uma liderança evangélica que é essencialmente proselitista e não tem uma ação pastoral. E proselitismo sem uma ação pastoral é um verdadeiro bumerangue, vai se voltar contra essa liderança”, observa Kivitz.
Enquanto essa profecia não se cumpre, a Igreja Católica terá que se esforçar mais para reverter a perda de prestígio. Uma das saídas seria agilizar a oferta de padres para dispor de mais mão-de-obra para o trabalho. É uma batalha árdua. Enquanto para ser pastor basta ser treinado numa igreja sem necessariamente ter que estudar teologia, o vigário investe em geral de sete a oito anos em sua formação acadêmica.
Primeiro, faz faculdade de filosofia e de teologia. Depois de ordenados, muitos ainda seguem para Roma, para especializar-se em liturgia. “Muitos pastores são formados no dia-a-dia da comunidade e simplesmente aprendem a reproduzir os discursos que escutam”, afirma Kivitz. “É uma liderança adestrada, que não desenvolve competências.”
Sílvia Fernandes, socióloga, professora-adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e consultora do Ceris, um centro de pesquisas ligado à CNBB, observa mudanças na formação dos padres, especialmente no movimento de Renovação Carismática, que tem catalisado novas vocações. Mas ela não sabe se essa mudança forma um clero mais eficaz. “O que se questiona é o perfil desse novo clero, que tem se mostrado mais espiritualista e menos implicado nas transformações sociais, criando menores vínculos entre fé e mudança social, como pretendia a Teologia da Libertação.”
Se no departamento de recursos humanos a coisa anda meio empacada, outra saída seria melhorar o diálogo com as outras vertentes cristãs, a fim de reduzir tensões. Mas nesse quesito também parece não haver muito progresso. Por que se vêem como a única igreja verdadeira e consideram todas as outras como dissidências, a conversa com os católicos fica sempre comprometida. Até representantes da Igreja Anglicana, que é meio católica na forma, mas bem protestante no conteúdo, afirmam que o diálogo é meio “chocho”, na expressão de Robinson Cavalcanti, bispo da diocese do Recife da Igreja Anglicana.
“Ao se ver como 'a' igreja e as demais como imperfeições, a Igreja Católica gera uma grande irritação. Além disso, esse papa não tem o carisma do papa anterior, é mais tímido e introspectivo. Com rebanho e influência diminuídos e em função da própria personalidade do papa, essa visita não terá o mesmo impacto da visita anterior”, acredita Cavalcanti.
Os pesquisadores também acham que a política institucional adotada pelo Vaticano para fortalecer o catolicismo está equivocada. Num momento de crise existencial, a ordem é reafirmar a própria identidade. “Pode até aparecer a palavra diálogo, mas a realidade é a afirmação identitária. Isso, para mim, é muito claro”, afirma Faustino Teixeira.
O grande desafio, segundo ele, seria romper com essa imagem de que a Igreja Católica é a única possibilidade de salvação, a única religião verdadeira, e tentar conviver com a riqueza da diferença. “Mas a tendência tem sido de afirmação da identidade diante do temor do pluralismo.”
O ouvidor da PUC-SP concorda que pode, sim, haver outros caminhos que levem a Roma. “Se a pessoa quer encontrar Deus na Assembléia de Deus, na Sinos de Belém, até na Universal do Reino de Deus, qual é o problema? Deus não é propriedade de nenhuma igreja.”