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Uri Avnery: Morreu o mito do super-homem israelense

''Hoje é Yom Kippur (Sábado, 22), e quase automaticamente os meus pensamentos voltam ao passado, como o de todos que lá estavam, reunidos naquele Yom Kippur, há 34 anos. Eu estava sentado em casa, conversando um amigo, quando, de repente, as sirenes começ

''Havia agitação na rua. Veículos militares passavam em alta velocidade, militares fardados corriam com mochilas de campanha às costas, aviões rugiam no céu.



Nos reunimos à frente do rádio, que normalmente permanece desligado no Yom Kippur. O rádio anunciou que começara uma guerra.



Não fui convocado, mas nos dias seguintes vi a guerra de diferentes ângulos. Naquela época, eu era Membro do Knesset e editor-chefe da revista Haolam Hazeh de notícias, mas o Knesset estava em recesso (como sempre, durante as campanhas eleitorais) e a revista estava praticamente parada, porque a maioria dos jornalistas haviam sido convocados. Rami Halperin, um jovem fotógrafo que acabava de prestar serviço militar e começara a trabalhar na revista, nem esperou a convocação e correu para reunir-se à sua unidade, antes da batalha pela “Fazenda Chinesa” na qual foi morto.



Um conhecido diretor da televisão alemã veio para Israel e consultou-me sobre o melhor modo de filmar a guerra. Quando conversávamos, teve a idéia de fazer um filme sobre o modo como eu cobria a guerra.



Por isso, vi todos os fronts. Estávamos à procura de Ariel Sharon no sul e o seguimos até o Canal de Suez. Alguns quilômetros antes do canal, entramos em área egípcia. Ficamos retidos num enorme engarrafamento de trânsito – uma divisão inteira, com carros de transporte de soldados, canhão, tanques, ambulâncias deslocava-se para a área do canal. No caminho, visitamos um hospital de campanha, onde um médico militar Ephraim Sneh – hoje importante Membro do Knesset – fazia uma cirurgia. 



Em seguida, corremos para a Frente Norte. Vimos muitos tanques queimados, nossos e deles, e alcançamos um vilarejo a dez quilômetros de Damasco. Estranho que seja, lembro que conversei sobre gatos com um menino.



No caminho, estivemos num campo de refugiados perto de Nablus e na Cidade Antiga em Jerusalém. Em todos os cafés ouvia-se a voz do presidente do Egito, Anwar al-Sadat, explicando os objetivos daquela guerra. Os alemães da equipe de televisão ficaram atônitos. Lembravam histórias da 2ª Guerra Mundial e não acreditavam que, em território ocupado, a população estivesse ouvindo livremente uma rádio inimiga.



Mas o evento que ficou gravado para sempre na minha memória – e na memória de quase todos os israelenses daquele tempo – não aconteceu no front.



Estávamos reunidos no apartamento de um vizinho, quando a televisão mostrou a imagem de dúzias de soldados israelenses ajoelhados, cabeça baixa, mãos para cima, cercados por assustadores soldados sírios.



Jamais antes víramos soldados israelenses naquele estado: sujos, barbudos, visivelmente assustados, humilhados por humilhação que só os prisioneiros de guerra conhecem. 



Fez-se silêncio na sala. Naquele momento, morreu o mito do super-homem israelense, do soldado israelense invencível, que dominara as nossas vidas por uma geração. Esse mito foi a última vítima da Guerra do Yom Kippur.



É verdade, o exército de Israel venceu ali uma prova de fogo. Em três semanas de guerra, arrancou uma vitória que parecia impossível. No começo da guerra, Moshe Dayan, ministro da Defesa resmungava sobre a ''destruição do Terceiro Templo” (quer dizer, do Estado de Israel); no final, o exercito já ameaçava o Cairo e Damasco.



Mas a lenda do exército israelense invencível ficou em frangalhos. A imagem dos prisioneiros israelenses vencidos e humilhados não sai de nossa memória. Pouco depois da guerra, eclodiu a “Batalha dos Generais”. A disputa entre eles destruiu o prestígio dos líderes militares, que até então eram ídolos da população. Esse prestígio jamais voltou a ser o que fora. (Mas, ao contrário do que muitos esperavam, não diminuiu o controle do exército sobre a política israelense.)



A essa ruptura psicológica seguiu-se uma mudança política. A geração de Golda Meir saiu de cena, substituída pela geração de Yitzhak Rabin. Só três anos e meio depois aconteceu o que então era impensável: Menachem Begin, o eterno líder da oposição, assumiu o poder.



O maior feito de Begin, a paz com o Egito, foi resultado direto da Guerra do Yom Kippur, que os árabes chamam de “Guerra do Ramadan”. Terem atravessado o canal e ultrapassado a Linha Bar-Lev recuperou o orgulho egípcio – e, assim, a paz tornou-se possível. Fui um dos primeiros cinco israelenses que chegaram ao Cairo depois de Sadat ter visitado Jerusalém, e lembro claramente dos cartazes nas ruas: ''Sadat – Herói da Guerra, Herói da Paz!''



Em Israel também, muitos lembram de Begin como herói da paz. Afinal, foi o primeiro estadista israelense a assinar a paz com um país árabe – e não só um país árabe como, além disso, o país árabe mais central e mais importante. Apesar de tudo o que aconteceu de lá até hoje, essa paz foi mantida.



Muitos reclamam de que Bashar al-Assad e o rei Abdallah da Arábia Saudita não sigam o exemplo de Sadat. Por que não ousam visitar Jerusalém?



Esse raciocínio é resultado de uma má leitura dos fatos. Sadat não ‘ousou’ visitar Jerusalém, nem apenas decidiu vir. As coisas não aconteceram como tantas vezes são contadas (até em conversas comigo): que Sadat voltava da Europa, sobrevoou o Monte Ararat e teve ali uma inspiração, que o levou a fazer algo que ninguém jamais fizera: visitar a capital inimiga, ainda na vigência do estado de guerra.



A verdade é que, antes da visita, emissários de Sadat e Begin já se haviam encontrado secretamente no Marrocos. Só depois de Moshe Dayan, ministro de Relações Exteriores, ter prometido, com o aval de Begin, que devolveria todos os territórios egípcios ocupados, é que Sadat decidiu visitar Jerusalém.



Onde está hoje o líder israelense que prometa a Assad devolver todo o Golan, e que prometa a Mahmoud Abbas recuar até a Linha Verde?



Como e por quê Begin decidiu devolver ao Egito ''partes da terra dos nossos ancestrais''?



Muito simples: para ele, não havia ''partes da terra dos nossos ancestrais''.



Begin tinha à sua frente um mapa bem claro da Terra de Israel. Herdara-o de seu professor e mestre, Zeev Jabotinsky: o mapa do país no início do Mandato Britânico, nas duas margens do Jordão.



Ao longo da história, as fronteiras desse país mudaram centenas de vezes. Houve as fronteiras da Terra Prometida, do Nilo ao Eufrates. Houve as fronteiras do “Reino de Davi” (que jamais existiu), até Hamat no norte da Síria. Houve as fronteiras do pequeno enclave à volta de Jerusalém, no tempo de Ezra e Nehemia. Houve as fronteiras da Palaestina Romana, que mudaram várias vezes. Houve as fronteiras da ''Jund (zona militarizada) Filastin'' dos conquistadores muçulmanos. E muitas outras.



Como as precedentes, também as fronteiras do Mandato Britânico foram fixadas por acaso. No sul, voltaram as fronteiras de antes da 1ª Guerra Mundial entre os britânicos (que dominavam o Egito) e os turcos (que dominavam a Palestina). No norte, voltaram as fronteiras de logo depois da guerra, entre o governo colonial francês na Síria e o governo colonial britânico na Palestina. Na Cisjordânia, estendeu-se um longo braço até o Iraque, para facilitar o fluxo de petróleo de Mosul (então controlada pelos britânicos) até Haifa, no Mediterrâneo.



Esse mapa casual, acidental, foi santificado por Jabotinsky, que escreveu os versos famosos: ''O Jordão tem duas margens / a de cá é nossa / e a de lá, também.” Esses versos aparecem no hino do Irgun na clandestinidade e também aparecem no cabeçalho do jornal do Partido Revisionista de Jabotinsky, do qual nasceu o atual Likud. Conclusão de Begin: a península do Sinal não é parte da Terra de Israel e, portanto, pode ser devolvida sem qualquer escrúpulo moral. O objetivo era tirar o Egito da guerra, o que, para Begin, era importante por uma razão: porque lhe interessava tomar posse de toda a Terra de Israel, que outros conhecem pelo nome de Palestina.



Begin também não teria problema com devolver Golan, o qual, segundo o seu mapa, tampouco pertence ao país. Mas foi seduzido por Ariel Sharon, que o convenceu a invadir o Líbano para aniquilar a OLP, escondendo seu segundo objetivo: nocautear a Síria. (Como se sabe muito bem, não se alcançou nenhum desses dois objetivos.)



Ao mesmo tempo, uma nova geração estava nascendo e crescendo, uma geração que não sabe de Jabotinsky e do seu mapa. Na consciência da Direita Israelense, formou-se outro mapa: a margem leste do Jordão saiu do mapa e Golan foi inserido no mapa. Mas no meio, como sempre, está a outra margem do rio.



Antes da Guerra dos 6 Dias, Steven Runciman, historiador britânico das Cruzadas, disse-me que vivemos num paradoxo: ''Israel foi fundado em terras que pertenceram aos filistinos, e os palestinos, cujo nome deriva dos filistinos, vivem em terras que pertenceram ao antigo Reino de Israel.'' As fronteiras entre o Estado de Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram demarcadas pela guerra de 1948.



Desde então, o Estado de Israel tem trabalhado muito para eliminar esse paradoxo.



Tudo que está acontecendo de significativo atualmente é parte do esforço de Israel para tomar a Cisjordânia e convertê-la em parte do Estado de Israel. O resto é espuma na água.



Condoleezza Rice, patética, continua indo e vindo. Ehud Olmert está redigindo um documento sem conteúdo, para criar a ilusão de que há progresso na direção de criar-se um Estado palestino vizinho de Israel. Aviões israelenses bombardeiam regiões sírias, para eliminar a ameaça de “armas de destruição em massa”. Israel prepara-se para bombardear ou não bombardear instalações nucleares no Irã. O presidente Bush convoca um ''international meeting'', em data não revelada, sem que se saiba quem será convidado, para finalidades que ninguém conhece.



Tudo aí é realidade imaginada. A realidade real acontece e prossegue no chão, todos os dias, todas as horas: incursões noturnas em cidades da Cisjordânia, construção frenética nos assentamentos, cresce a rede de estradas “só para israelenses” – há mais de 600 novos pontos de bloqueio, que dificultam ainda mais e tornam infernal a vida na Faixa de Gaza e nos guetos palestinos na Cisjordânia.



Essa é a guerra real: a guerra por “toda a Terra de Israel” – uma guerra que sumiu do discurso social, mas que está sendo furiosamente estimulada, longe dos olhos dos israelenses que vivam a apenas vinte minutos de distância, de carro, dali. O palestinos lutam com poucos recursos, mas com feroz obstinação.



Se não se alcançar algum acordo entre os povos, essa guerra prosseguirá por muitas gerações. Um menino que nasça hoje, entrará nessa guerra no dia de seu aniversário de 18 anos, como um menino que nasceu há 18 anos chega hoje à mesma  guerra, e o pai dele, como outros pais antes dele, o enterrará.



A Guerra do Yom Kippur foi um pequeno episódio dessa campanha. Foi lutada no norte e no sul, contra sírios e egípcios. Os palestinos não se envolveram. Mas ninguém duvidou, nem por um momento, de que já fosse parte do conflito israelense-palestino.''


 


Uri Avnery é um membro fundador do Gush Shalom  (Bloco da Paz israelense). Enquanto adolescente, Avnery foi um combatente independente no Irgun, a resistência judaica armada, e mais tarde soldado no exército israelita. Também foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Avnery foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Durante a guerra no Líbano em 1982, atravessou as linhas inimigas para se encontrar com Iasser Arafat. Tem sido jornalista desde 1947, foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelenses sobre a Palestina, incluindo My Friend, the Enemy e Two People, Two States.


 


Tradução de Caia Fittipaldi.


Título do Vermelho


Fonte: http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1190495504/