Olimpíada chinesa terá tocha no topo do Everest
Num dia de maio de 2008, a cerca de três meses antes da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, um alpinista chinês deverá erguer a tocha olímpica no cume do Everest, a 8.848 metros de altitude. Por obra das equipes da CCTV (a TV Central da China), este p
Publicado 01/02/2008 08:05
As autoridades de Pequim estão planejando tudo nos mínimos detalhes para que o sucesso seja completo. Segundo o plano aprovado pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), este “desafio à capacidade humana, que deverá alcançar novos extremos de coragem e de resistência”, permitirá “transmitir uma mensagem de paz e de amizade, além de compartilhar a alegria e a paixão das Olimpíadas com o mundo inteiro”. Assim, o mundo verá a tocha olímpica brilhar no Qomolangma, o topo da China e do mundo.
Após “destacar as belezas das paisagens do Tibet”, a tocha prosseguirá o seu “itinerário da concórdia”, carregada por cerca de 22 mil voluntários que passarão por uma centena de cidades chinesas, até alcançar Pequim em 8 de agosto, o dia da cerimônia de abertura.
À primeira vista, o projeto é tão límpido quanto o ar das altitudes elevadas. Mas, quando analisado mais atentamente, ele se revela ao mesmo tempo complexo e não tão desinteressado quanto o ideal olímpico.
Desafios
O primeiro obstáculo é de ordem física. No cume do monte Everest, a pressão atmosférica é três vezes mais reduzida do que ao nível do mar, o que faz com que uma chama perca o seu fôlego tão seguramente quanto um homem. Para solucionar este problema, os técnicos da China Aerospace, a agência espacial chinesa, imaginaram colocar a tocha sob “assistência respiratória”. Da mesma forma que os alpinistas encarregados de transportá-la até o Teto do mundo utilizarão oxigênio engarrafado, a chama olímpica será alimentada por uma mistura de propano e de oxigênio. Mas, considerando-se que este dispositivo produziria a mesma chama azul e pouco fotogênica que as bocas de um fogão a gás, uma segunda baforada de oxigênio será “vaporizada” sobre ela de modo a produzir uma bonita luz amarela. Depois de uma série de testes, o comitê organizador garante que a tocha poderá resistir a ventos de 65 km/h – um limite que costuma ser transposto com freqüência nos declives da parte superior do Everest…
Uma vez resolvida a questão física, resta um pequeno quebra-cabeça lógico. O capitão Wang Yongfeng, chefe da equipe dos alpinistas, anunciou que o revezamento “começaria a 8.300 metros de altitude”. Ora, como poderia a ascensão “começar” a uma altitude na qual nenhum helicóptero tem condições para pousar? A solução é criar a ilusão por meio de um truque mágico: após ter sido acesa em Olímpia, na Grécia, a chama vai se desdobrar ao chegar a Pequim, em 31 de março. Uma primeira tocha partirá para uma volta ao mundo de um mês, enquanto o seu clone será encaminhado até o campo de base do Everest, para então ser colocado em posição no campo mais elevado, a 8.300 metros. Assim, quando a chama tiver retornado à China, em 4 de maio, o revezamento poderá ser interrompido a qualquer momento para permitir que seja aberto o parêntese da aventura no Himalaia. No dia D, quando as condições meteorológicas estiverem favoráveis, as câmeras da CCTV acompanharão ao vivo a ascensão rumo ao Teto do mundo, e depois sua descida até Lhassa, onde a tocha número 2 estará aguardando a passagem da tocha número 1.
A subida à montanha mais alta do mundo deixou de ser a aventura que representava durante o primeiro quarto de século que se seguiu à vitória de Tenzing e Hillary – Sir Edmund Hillary (1919-2008) e o xerpa Tenzing Norgay foram os primeiros a alcançar o topo do Everest, em 29 de maio de 1953. Mas ela continua sendo imprevisível. Para que o sucesso seja garantido, os organizadores têm um trunfo: a logística. Há cerca de 15 anos, a face chinesa do Everest costuma ser “ocupada” durante a primavera por expedições comerciais integradas por xerpas vindos do Nepal e, cada vez mais, do Tibet.
Esta mecânica está bem rodada: instaladas em campos de base que dispõem de todos os itens para garantir o conforto, podendo encomendar os seus legumes frescos por telefone celular na cidade tibetana vizinha, essas expedições conseguem conduzir até 80% dos seus clientes até o cume. Mais de 600 alpinistas conseguiram vencer o Everest em 2007. Neste outono, o guia neozelandês Russell Brice, um dos mais experientes entre os operadores de turismo do Teto do mundo, visitou Pequim para acertar a organização desta temporada diferente das outras. Como faz todos os anos, ele gastará a quantia de US$ 30 mil (cerca de R$ 53 mil) para que um grupo de 30 xerpas coloque da base até o último metro da montanha uma linha de vida ininterrupta de 10 km de cordas fixas. Em Pequim, obteve a autorização para acompanhar de perto os acontecimentos no Everest nesta primavera, para colaborar com os 80 alpinistas chineses do time olímpico. Quando a operação da tocha for concluída, retomará sua rotina e cada um dos clientes das outras expedições deverá desembolsar um “pedágio” de US$ 100 para a utilização das cordas fixas.
Na base do Everest, estarão reunidas toneladas de material de difusão levadas por caminhões, além das antenas gigantes da rede China Mobile (a maior operadora de telefonia móvel da China), um radar, um balão para as previsões meteorológicas, etc. Os 100 km de pista que conduzem até o campo base foram transformados em quatro meses numa estrada moderna. Tudo está pronto para o show, ao vivo… Ou quase. Os telespectadores chineses verão, como de costume, as imagens com um pequeno atraso, de alguns segundos, o tempo necessário para uma intervenção, no caso de algum imprevisto.
“Um único sonho”
Um ensaio geral da operação Everest foi organizado secretamente na primavera de 2007. Foi bem-sucedido, com a exceção de um pequeno detalhe. Em 25 de abril, três jovens militantes americanos da ONG Students for a Free Tibet (Estudantes por um Tibet livre) instalaram no campo de base uma faixa cujos dizeres modificavam o slogan olímpico: “One world, one dream, free Tibet” (Um único mundo, um único sonho, libertem o Tibet). Um deles, cuja camiseta laranja trazia a frase “Não à chama no Tibet”, acendeu uma “tocha da liberdade” e entoou o hino nacional tibetano. A data deste ato não havia sido escolhida ao acaso. Aquele 25 de abril era o dia do 18º aniversário do panchen lama, o segundo dignitário mais importante do budismo tibetano, que se encontra preso desde a idade de 6 anos.
“O governo chinês pretende utilizar as Olimpíadas para esconder a brutalidade da ocupação do Tibet e tentar obter sua aceitação no cenário internacional como um poder moderno”, explicam os militantes em seu site na Internet. “O monte Everest não está situado na China, ele fica no Tibet, muito perto do lugar onde guardas de fronteira chineses atiraram em refugiados tibetanos, em setembro passado” (quando uma jovem mulher foi morta). Os militantes foram presos, e depois expulsos. Após terem insistido neste verão, instalando outra faixa na Grande Muralha, os militantes prometeram que o seu movimento não pararia por aí: “A China pode prever que haverá novos protestos com as mesmas características, antes e depois dos Jogos Olímpicos”.
As autoridades de Pequim estão dispostas a tudo para difundirem imagens de “harmonia” durante esses “jogos do povo”. O ciberdissidente Jing Chu havia escrito artigos contra a realização em Pequim dos “Jogos Olímpicos algemados, que nada proporcionarão à população, a não ser a desgraça”. Ele foi preso em 20 de dezembro de 2007 por “subversão do poder do Estado” e corre o risco de passar vários anos encarcerado.
Um pequeno lembrete para quem ficaria tentado a enxergar neste caso uma deturpação dos ideais olímpicos: o logotipo dos cinco anéis de cor, criado por Pierre de Coubertin (1863-1937, o fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna), foi popularizado em 1936 por ocasião das Olimpíadas de Berlim. O primeiro revezamento da tocha olímpica aconteceu naquele ano, e foi um triunfo da propaganda nazista.
Fonte: Le Monde