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Vulnerabilidade e investimento estrangeiro sentados na bolha

Desde que explodiu a crise financeira dos subprimes se discute no Brasil sua repercussão e efeitos em nossa economia. Ao final de janeiro passado, ao divulgar os dados do setor externo brasileiro de 2007, o Banco Central destacou os números do investim

Entretanto, causa estranheza que, na discussão da vulnerabilidade de nossa economia a choques externos, nem o BC nem a imprensa tenham se referido aos números da chamada Posição Internacional de Investimento, que se encontra nas duas últimas tabelas daquela nota à imprensa do Banco Central, que continha os festejados dados sobre o IED de 2007.


 


Um exame dessas tabelas pode fazer com que se desconfie que, longe de estarmos “descolados” da crise americana, nós podemos estar sentados também sobre uma bolha especulativa ligada a capitais estrangeiros especulativos. E nesse caso, está aí incluído uma parcela significativa de recursos de brasileiros que, transferidos para o exterior desde a década de 1980, especialmente e originalmente para paraísos fiscais nas Antilhas, e que – desde meados dos anos noventa – tem entrado e saído de acordo com as oportunidades de valorização, e naturalizado como “estrangeiro”.



A nossa “bolha”



As tabelas da Posição Internacional de Investimento dão conta dos valores de mercado das propriedades de nacionais no exterior (ativos) e de estrangeiros no Brasil (passivos). O último dado é de junho porque os dados trimestrais são divulgados com uma defasagem de seis a nove meses (Os dados do terceiro trimestre de 2007, por exemplo, só serão divulgados na nota à imprensa do setor externo do próximo abril). Como resume a tabela 1 (veja abaixo), somos um país liquidamente devedor do estrangeiro, o que não é nenhuma novidade.



O que chama a atenção na tabela 1 é o crescimento acelerado do passivo externo, iniciado em 2005, que verdadeiramente explodiu em 2006 e no primeiro semestre de 2007. O passivo cresceu em 18 meses US$ 286 bilhões, quatro vezes o também extraordinário crescimento de nossas reservas no mesmo período, fazendo com que o passivo líquido também subisse em US$ 141 bilhões, quase 43% a mais do que era em dezembro de 2005. A tabela 2 (que lista os principais agregados do passivo) revela que quase todo este crescimento se concentrou nos estoques de investimentos em carteira – ações e títulos de renda fixa.



A evolução de passivos externos de grande liquidez não vem tendo como contrapartida uma entrada proporcional de divisas em nossas reservas internacionais. O crescimento observado no valor do estoque desses passivos em dólar decorre principalmente da valorização intensa das ações e outros títulos comercializados nas Bolsas de Valores (Bovespa) e de Mercadorias e Futuros (BM&F), potencializado pelo fortalecimento da cotação do Real.



O gráfico abaixo mostra o crescimento mais que proporcional do valor do patrimônio acionário dos estrangeiros frente ao fluxo acumulado de entrada de dólares para essa aplicação. Desde dezembro de 2001, a valorização, em dólar, das ações fez com que uma entrada de US$ 20,1 bilhões para aplicação em bolsa elevasse o patrimônio dos estrangeiros de US$ 13,9 bilhões, naquela data, para US$ 120,1 bilhões em junho de 2007. 



Já a tabela 3 faz uma comparação entre o ritmo de valorização das ações de propriedade de estrangeiros com o comportamento do Ibovespa e da valorização do Real frente ao dólar. Também comparamos a valorização das ações de empresas brasileiras cotadas no exterior (Bolsa de Nova York) sob a forma de ADR (American Depositary Receipts) 3 com a valorização do Índice Dow Jones. Observa-se que, após uma fase de intensa perda, decorrente da crise de liquidez no segundo semestre de 2002 – associada à primeira eleição de Lula – a valorização posterior do patrimônio se coloca em nível superior à valorização média das ações, respectivamente, da Bovespa e da Bolsa de New York, somada, no caso da primeira, ao fortalecimento do Real frente ao dólar. (Nota: O ADR é um título representativo de ações de empresas não-americanas negociados no mercado de capitais dos Estados Unidos (EUA). Cada título representa certo número de ações já existentes (exceto o de nível III), que permanecem custodiadas. Existem três níveis de ADR, cada um com exigências diferenciadas de transparência e adequação às normas norte-americanas. O ADR – Nível I é o que tem menor nível de exigência e é negociado no mercado de balcão (denominado OTC – Over the Counter). O ADR – Nível II é negociado em bolsa de valores dos EUA. Nestes dois primeiros níveis não há lançamento de novas ações. Apenas no ADR – Nível III, que possui o mesmo grau de exigência do ADR – Nível II, o seu registro se dá com o lançamento de novas ações e a conseqüente captação de recursos).



O ritmo de crescimento da Bovespa já seria suficiente para diagnosticar uma bolha especulativa de longa duração no mercado mobiliário. E a parcela do patrimônio estrangeiro desse mercado parece ser o principal fator do fenômeno. A maior valorização dos estoques de ações de posse de estrangeiros frente aos índices gerais das duas Bolsas é um indicador de que tais papéis – tanto no Brasil como no exterior – vêm liderando a forte alta de nossa Bolsa. 4 Como a valorização das ações de estrangeiros e dos ADR nas duas Bolsas apresentam a mesma tendência, e a composição das carteiras muito semelhante, é razoável supor que os preços domésticos das ações de propriedades de estrangeiros sejam em função dos preços praticados em Nova York. Essa dependência da dinâmica da Bovespa em relação a Nova York é amplamente reconhecida pelos operadores do mercado brasileiro.



Os riscos da bolha



Os riscos de uma bolha especulativa já são por demais conhecidos. No caso Brasil, sem uma moeda livremente conversível, 5 os riscos se ampliam porque uma reversão brusca da tendência especulativa (o “estouro da bolha”) afeta fortemente a taxa de câmbio e as reservas de divisas, ameaçando a capacidade de financiamento externo e até a própria liquidez externa.



Os indicadores de vulnerabilidade externa que usualmente medem a fragilidade das contas externas se referem a variáveis tradicionais de passivos de dívidas (passivos exigíveis) e de capacidade de geração de divisas em conta corrente – como a relação serviço da dívida/exportação, reservas/dívida total ou reservas/dívida de curto prazo. Ou medem a relação do endividamento com a dimensão da economia – como a relação dívida externa/PIB. São medidas de liquidez e solvência frente a passivos exigíveis. A melhora expressiva e inusitada desses indicadores, desde 2003, reflete a redução absoluta do endividamento e a grande expansão do superávit comercial, fundamentando a convicção corrente de que nossa vulnerabilidade frente a um choque externo é pequena ou mesmo irrelevante.



Porém, esses indicadores não expressam os riscos externos decorrentes da mobilidade de capital entre países. À medida que a conta de capital foi gradualmente aberta pelos países nas últimas duas décadas, a origem dos choques externos de liquidez foi se alterando. Essas crises decorreram mais em função de bruscas e maciças transferências de capital – pela busca de monetização de ativos financeiros internos de grande liquidez – do que por desequilíbrios por endividamento excessivo, oriundos de queda de exportação ou elevação da dívida (cujos riscos são medidos pelos indicadores da Tabela 4).



O Brasil sofreu uma abertura expressiva nas regras de movimentação de capitais com o exterior. O ápice dessas mudanças ocorreu em março de 2005, quando resolução do CMN 6 determinou que entrada e saída de divisas fossem livres, exceto para aquelas operações para as quais o Banco Central mantém regulamentação específica. Estabeleceu também tratamento igual para a liberdade de transferência de patrimônio entre estrangeiros (não residentes) e nacionais, permitindo, pela primeira vez desde a 1ª Guerra Mundial, que brasileiros possam retirar livremente seu patrimônio constituído no país, desde que estejam quites com o fisco.



Mantendo-se as regras cambiais vigentes, uma súbita mudança de expectativas entre os investidores – especialmente os “estrangeiros” – quanto ao mercado mobiliário nacional, ou a necessidade de fazer caixa ou de realizar lucros, para cobrir perdas em outros mercados, podem desencadear uma corrida pela monetização, em Dólar, de seus ativos financeiros. Causando impacto nas reservas internacionais e também um grave crash no nosso mercado mobiliário e de crédito interno e externo, logo transmitido à economia sob a forma de forte recessão.



O problema de uma bolha especulativa é que ela gera rapidamente enormes patrimônios em moeda nacional e que, para serem defendidos, podem exigir sua dolarização. O caso do patrimônio estrangeiro em ações ilustra bem o problema. Isso pode tornar as defesas do país – reservas de divisas e boas condições de solvência – insuficientes para evitar, seja uma crise cambial seja uma conseqüente depressão econômica interna.



Se levarmos em consideração a possibilidade de movimentos bruscos na conta de capitais, a avaliação de nossa vulnerabilidade muda bastante. A tabela 5 expõe os principais ativos e passivos de maior liquidez que poderiam ser computados para testar a liquidez externa, dessa forma mais ampliada.



Nessa posição de liquidez não consideramos a parcela de ativos financeiros líquidos de propriedade de nacionais que também, a rigor, podem posicionar-se de forma defensiva e tentar resguardar parte de seu patrimônio e uma moeda forte. Mesmo não tendo como os estrangeiros (embora parte deles, como vimos no início, é formada por brasileiros com disponibilidades no exterior) a razão de transferir recursos para o exterior para cobrir posições em outros mercados, os nacionais também podem acompanhar os estrangeiros na posição de defender o valor do seu patrimônio em dólares. Por outro lado, a hipótese de contar com a totalidade dos créditos relativos à conta de Moedas e Depósitos no exterior, na verdade, não é realista; pois, sendo esses ativos privados, sua repatriação só se daria segundo o cálculo de interesse pessoal ou na medida em que o detentor nacional enfrentasse problemas para liquidar passivos internos. Parte considerável desses depósitos em moeda no exterior parece ter por origem a disponibilidade de divisas de exportadores. O seu forte crescimento a partir de 2007 coincide com a entrada em vigor de novas regras cambiais que permitiu ao exportador manter no exterior os dólares de suas vendas; ver Lei 11.371, de 28/11/2006, antes MP 315, de 3/08/2006).



Mesmo assim, a situação revelada por essa posição de liquidez internacional apresenta uma fragilidade preocupante, enquanto o Banco Central se mostra indiferente a esse risco, mantendo sua política monetária monotemática contra a inflação.



Os argumentos que minimizam os riscos da bolha



Há dois argumentos que tentam minimizar os riscos dessa bolha especulativa, defendendo a não intervenção das autoridades monetárias. O primeiro deles apela para o cálculo racional dos investidores estrangeiros, que sabem que qualquer movimento significativo de monetização de seus ativos financeiros (ações e títulos) implicaria em graves perdas patrimoniais. Esse tipo de movimento só seria possível diante de uma grave ameaça de perda total (suspensão da conversão em moeda estrangeira ou expropriação, por exemplo).



Apesar de a racionalidade desaconselhar fugas bruscas e maciças de capital, elas acontecem frequentemente. Mesmo quando não existem pânicos internacionais. Isso se explica pelo comportamento de manada dos operadores, pela prioridade de manter posições em mercados considerados mais importantes (para eles) ou mesmo porque as perdas, por maiores que sejam, ainda são compatíveis com os ganhos.



Em 2002, aqui mesmo no Brasil, os “estrangeiros” na Bolsa, aceitaram perdas de patrimônio da ordem de 50% entre os meses de abril e setembro, em um movimento especulativo e de pânico que paralisou a rolagem da dívida pública interna e desvalorizou o Real em até 40%.



(Nota: Esse movimento especulativo – que se circunscreveu ao Brasil – teve também um forte viés político por parte dos grandes credores da dívida pública interna, cujo objetivo foi paralisar o refinanciamento da dívida pública forçando os principais candidatos à Presidência na época a se comprometerem com a política monetária e fiscal em vigor e em respeito aos contratos. Objetivo que foi alcançado formalmente entre junho [“Carta aos Brasileiros”, de Lula] e setembro daquele ano [compromisso com um empréstimo emergencial do FMI, vinculado às condições exigidas, subscrito por todos os candidatos relevantes]. Sobre a análise desse episódio em Morais, Lecio e Saad-Filho, Alfredo; Lula, the 'Losers'Alliance'and the prospects for change in Brazil. Capital And Class, London, UK, n. 81, 2003).



Certamente que, para desencadear uma grave crise cambial e de liquidez, basta que apenas uma parcela desses ativos sejam monetizados (dolarizados), já que o impacto das expectativas faria o resto.9 Tomando a crise de 2002 como parâmetro, caso os estrangeiros se vissem obrigados a aceitar um deságio no patrimônio, em dólares, também de 40%, isso ainda seria racionalmente aceitável; pois seria possível realizar uma parte dos ganhos em dólares e ainda manter um saldo de patrimônio em reais significativamente superior ao capital originalmente aplicado. Evidentemente, a situação de nossas reservas – hoje acima dos US$ 180 bilhões – é uma diferença significativa em relação a 2002. Entretanto, a posição de liquidez exposta na tabela 5 é de conhecimento dos operadores, sendo evidente que mesmo o volume de reservas atual não é garantia contra perdas para todos e tudo. Permanecem válidos os mesmos fundamentos de qualquer crise e o princípio de que aquele que sai primeiro sai em vantagem.



O segundo argumento é o do otimismo: simplesmente não existe uma bolha especulativa ou, em havendo, ela não “estourará” como todas as outras. A base do argumento é que a valorização ocorrida apenas antecipa o reconhecimento do Brasil como “grau de investimento” (investment grade) pelas agências internacionais de rating. Quando essa nota for concedida, os investidores institucionais (fundos de pensão, seguradoras etc.) que investem em longo prazo entrarão no mercado em um volume suficiente para ratificar as atuais cotações dos papéis, que passará a servir de base para o desenvolvimento futuro de nosso mercado de capitais.



O argumento otimista enfrenta duas restrições. Uma restrição específica é que a valorização ocorrida desde 2003 já inflou a Bovespa em 300% desde 2001, duplicandoa a partir de 2004. Uma valorização estupenda que só perde no mundo para a Bolsa de Xangai, sem termos, nem de longe, as mesmas razões econômicas que tem a China para se vangloriar. Isso é uma bolha especulativa, sem dúvida. Mesmo a “exuberância irracional” da Bolsa de Nova York atingiu “apenas” 180% em seis anos (1995). O que temos, desde 2003, é um movimento especulativo forte e de longa duração que, como todos os outros, chegará ao fim de uma forma mais ou menos dramática.



A segunda restrição é que nossa classificação de investment grade pode não sair tão cedo. Antes aguardada para 2007, foi adiada para 2008, e pelas declarações de executivos das principais agências de avaliação de riscos (Moody’s, Standard & Poor's e Fitch) após o início da crise americana, não há como o Brasil obtê-la antes de 2009. Mesmo assim, tal nota fica condicionada a adoção de medidas tidas como “necessárias”, tais como as “reformas da Previdência, tributária e trabalhista e diminuição dos gastos públicos e da dívida interna”.  O mecanismo circular da fuga de outros ativos, como títulos públicos, levaria a dívida a uma situação de virtual insolvência (como em 2002). Ao contrário do que se avalia, o refinanciamento de nossa dívida pública federal também continua muito frágil.



Ora, sabemos que o atual governo não tem muito entusiasmo por realizar tais “reformas” ou não tem condições políticas de fazê-las. Ou seja, a tão esperada nota pode nem ser conseguida. O que seria mais um fator para desestabilizar a “bolha” e não para mantê-la.



O quadro, portanto, nada tem de tranquilizador. A ameaça de estouro dessa bolha de ativos financeiros comandada por “estrangeiros” – representada principalmente por ações na Bovespa e na Bolsa de Nova York pesa sobre a cabeça da nação como uma espada de Dâmocles.



Diante disso, a posição de nossa autoridade fiscal é de irresponsabilidade. Permanece absolutamente inerme, como se os riscos fossem inexistentes ou irrelevantes. A elevação também recente dos empréstimos de curto prazo, que dobraram no primeiro semestre de 2007 (ver tabela 5) já seria um sinalizador alarmante que cada vez mais os nacionais estão se financiando no curto prazo no exterior para participar fortemente da bolha especulativa comandada pelos não-residentes.



O pior é que sabemos que, ao fim e ao cabo, nosso BC não poderá se comportar como o FED americano diante de uma crise súbita de liquidez, ele não tratará de salvar o nível de atividade da economia – resguardando a produção e o emprego. Pelo contrário, como sempre vem fazendo, tratará de elevar as taxas de juros, fazendo a União assumir os prejuízos privados e preservando o valor do patrimônio financeiro dos que ficarem.



* Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e assessor parlamentar na Câmara dos Deputados