PC dos EUA: o que nos levou à crise e como sair dela
''Enquanto milhões estão cientes das causas que desencadearam a crise, que vão de empréstimos predatórios à desregulamentação a favor da ganância insaciável, o que não é tão óbvio é o processo de longo prazo, que levou o nosso sistema financeiro e a ec
Publicado 09/10/2008 20:42
No artigo, Sam Webb descreve o modo como o capital produtivo, diante do beco sem saída que se meteu nos anos 70, é substituído pelo capital financeiro, em uma operação cujo timoneiro foi Paul Volcker, o presidente do banco central americano, o Federal Reserve, à época.
''O aumento das taxas de juros para níveis recordes redirecionou o capital nacional e estrangeiro de forma abrupta e maciça para circuitos financeiros, onde os ganhos de capital foram extremamente elevados. Volcker, como um banqueiro experiente, sabia que o problema dos capitalistas não era pouco dinheiro, mas poucas oportunidades para investir de forma rentável o excedente de capital — uma crise de excesso de acumulação de capital'', descreve Webb.
Leia abaixo a íntegra do artigo:
A turbulência nos mercados financeiros e o socorro no montante de US$ 700 bilhões, fez a opinião pública olhar com ira para Wall Street e Washington.
Enquanto milhões estão cientes das causas que desencadearam a crise, que vão de empréstimos predatórios à desregulamentação a favor da ganância insaciável, o que não é tão óbvio é o processo de longo prazo, que levou o nosso sistema financeiro e a economia à beira do abismo.
Eu chamo esse processo de ''financeirização''. Segundo o economista Gerald Epstein, financeirização é um processo no qual os ''motivos financeiros, os mercados financeiros, agentes financeiros, e as instituições financeiras desempenham um papel crescente no funcionamento das economias domésticas e internacionais'' (“Financialization and the World Economy,” 2005)
Tudo começou na década de 1970
Na sua forma atual, a financeirização remonta a meados da década de 1970. Nessa altura, o capitalismo americano era atormentado por problemas aparentemente insolúveis e contraditórios — alta inflação e alto desemprego, diminuição da confiança no dólar, enfraquecimento da competitividade, crescimento lento e uma forte queda na taxa de lucro.
Confrontado com este desenrolar da economia e o enfraquecimento do imperialismo americano em escala mundial, o então presidente do Banco Central americano, Paul Volcker, puxou a alavanca para baixo e empurrou as taxas de juro a níveis altíssimos, nunca vistos antes.
Isto enxugou da economia a inflação, mas também atirou as taxas de desemprego para o nível mais alto desde a Grande Depressão, forçando o fechamento de postos de trabalho e de muitas fábricas, além de muitas pequenas fazendas familiares, colocando um peso incrível nas costas da classe trabalhadora e, sobretudo, sobre as costas das comunidades de negros, latinos e pobres americanos, impactando de forma negativa a economia mundial, particularmente nos países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina.
Ao mesmo tempo, o aumento das taxas de juros para níveis recordes redirecionou o capital nacional e estrangeiro de forma abrupta e maciça para circuitos financeiros, onde os ganhos de capital foram extremamente elevados. Volcker, como um banqueiro experiente, sabia que o problema dos capitalistas não era pouco dinheiro, mas poucas oportunidades para investir de forma rentável o excedente de capital — uma crise de excesso de acumulação de capital.
Além disso, uma vez no circuito financeiro, o capital se manteve lá, mas não de forma ociosa.
Levado pela sua própria natureza a se expandir e se reforçar constantemente por pressões de capital competitivo dos concorrentes (crescer ou morrer) em um ambiente permissivo pela lei, os agentes financeiros do capital (bancos, casas de investimento, hedge funds, empresas de private equity e assim por diante) correram, a uma velocidade alucinante, a comprar, vender, emprestar e gastar excessivamente nas três décadas seguintes — tudo isso levou a uma explosão do setor financeiro em termos de emprego, transações, ferramentas, players e lucros. Em outras palavras, a financeirização aconteceu com um ritmo febril, varrendo tudo pela frente.
Capital que produz pouco, destrói muito
Ao contrário do capital produtivo, que se reproduz e se expande extraindo o valor excedente e os lucros partir do poder do trabalho no processo de produção, o capital financeiro e muito mais ''preguiçoso'' e impaciente. Seu prazo é o curto prazo. Ele percorre o globo em um instante, graças à informatização e à web. Afundar-se em investimentos de longo prazo, em instalações, equipamentos e novas tecnologias, que criam empregos e fazem crescer a economia é algo que o capital faz, mas não é o prato favorito dele, especialmente nos últimos anos.
De fato, o capital financeiro é mais suscetível de destruir fábricas e equipamentos que investir neles — como exemplo, temos aqui o Rust Belt (Cinturão de Ferrugem, nota da tradução, o setor da indústria americana que foi destruido pela financeirização da economia) e as políticas de ajuste estrutural impostas aos países em desenvolvimento e aos países do extinto bloco socialista.
Quando é possível, o capital financeiro esconde-se nas sombras, para além dos olhos das enfraquecidas autoridades reguladoras. Como um bom empresário, ele inventa novos ''produtos'' (opções, swaps, futuros, derivados), muito mais arriscados e, em seguida, vende, compra e obtém grandes lucros a partir deles.
Quando os mercados financeiros são acometidos por turbulências, como acontece agora, o capital financeiro se monetariza e corre para a segurança até que cessem os ventos da tempestade. No caso de o capital não conseguir encontrar um refúgio seguro e vier a absorver enormes prejuízos, a segurança é dada pela certeza de que o governo federal e o Federal Reserve (Banco Central americano) logo correm a socorrer as fracassadas instituições financeiras, como estamos vendo agora.
O lubrificante da financeirização é a produção e reprodução de quantidades enorme de dívidas — corporativas, dos consumidores e do governo. A dívida é tão velha quanto o capitalismo, mas o que é diferente nesta época de financeirização é que a produção da dívida, os excessos e bolhas especulativas, agora são essenciais para o funcionamento do capitalismo nos EUA.
Uma faca de dois gumes
Assim como ganhou força e extensão no final dos anos 1980 e 1990, a financeirização cresceu a tal ponto que se tornou o principal determinante para moldar os contornos, a estrutura, a interdependência e a evolução da economia nacional e mundial. Enquanto a financeirização foi uma conseqüência natural das contradições e fragilidades sistêmicas do capitalismo americano, foi também a vanguarda de um modelo neoliberal da acumulação de capital e de governança, projetado para restaurar a dinâmica do capitalismo dos Estados Unidos, a rentabilidade e uma posição dominante no mundo e nos assuntos internos.
Mas, como estamos dolorosamente aprendendo, a financeirização é uma faca de dois gumes, e não a cereja no topo do bolo. Com efeito, o seu próprio sucesso abriu fendas na economia global e dos Estados Unidos, tornando a economia insustentável, como vemos agora.
Embora tenha estimulado a economia nacional e mundial, ela também deixou a nossa nação com uma pilha astronômica de dívidas familiares, governamentais e corporativas, que não podem ser resolvidas da noite para o dia.
Enquanto ela deu um impulso ao crescimento econômico, também apresentou uma enorme instabilidade nas artérias da economia mundial e dos EUA, evidenciada por contágios freqüentes a nível mundial e interno nas últimas duas décadas.
Enquanto isso, prorrogou o movimento cíclico ascendente do capitalismo, criando também uma base para um pouso duro da economia e eventualmente uma crise muito mais profunda, que é o que estamos enfrentando agora.
Enquanto criou riqueza em uma escala significativa, também estabeleceu com sucesso a engenharia da maior transferência de riqueza de nossa nação, da mão dos criadores de riqueza — a classe trabalhadora mundial — para os apropriadores da riqueza, a parte superior da crosta financeira dos Estados Unidos.
Enquanto atraía capitais móveis para o nosso mercado financeiro, a financeirização também nos dependentes da vontade dos investidores estrangeiros em absorver enormes quantidades de dívida, algo que eles estão cada vez menos dispostos a fazer, enquanto o dólar cai nos mercados monetários internacionais e o nosso mercado entra em colapso.
Enquanto o poder de compra dos endividados consumidores engordava a demanda ao redor do planeta, também vinculava o planeta à nossa financeirizada, endividada e instável economia.
A necessidade de um novo modelo de governação
E, no entanto, apesar destes destroços incríveis, desta quase incompreensível corrupção, desta especulação imprudente, destes mercadores de bens pilhados, da dívida e das privações, ainda estão tentando resolver esta crise financeira de forma a deixar os responsáveis pela crise ainda no comando das principais alavancas do poder, com suas riquezas intactas.
Isto não é ''socialismo'', como ouvimos a extrema-direita gritar. É estado parasitário do capitalismo monopolista-financeiro. Ou, em uma linguagem mais colorida, o capitalismo de cassino fora de controle.
O povo americano e os seus amigos no Congresso enfrentam um desafio de primeira classe. A curto prazo, algumas medidas imediatas devem ser tomadas para restaurar o funcionamento ordenado dos mercados financeiros, para restaurar a economia, e, acima de tudo, para melhorar condições de vida do povo norte-americano.
A longo prazo, o que é preciso é um novo modelo de gestão econômica a nível empresarial e estatal.
Quero dizer com isso uma reconfiguração do papel e das funções do governo e das empresas, para que elas favorecem os trabalhadores, os racialmente oprimidos, as mulheres, os jovens e outros grupos sociais. Isto vai exigir não só a eleição do candidato Partido Democrata, Barack Obama, mas também uma luta sustentada por uma coalizão liderada por trabalhadores, em conjunto com seus aliados na capital da nação, sobre o novo terreno da política americana.
Os recentes acontecimentos minaram a legitimidade do modelo neoliberal de governo e de acumulação tão ansiosamente abraçados pela administração Bush e pelos republicanos no Congresso (não é de admirar que eles dizem não querer apontar culpados pela crise).
Mas não há um substituto para isso. Em vez disso, temos um vazio político em que diversas forças tentam impor seu modelo de governança, alegando que só com ele se pode avançar.
Na minha opinião, tal modelo deveria ser espelhado na experiência do New Deal, mas que no final fosse moldado, em primeiro lugar, pelas condições e requisitos para o avanço econômico e político da classe trabalhadora e dos povos oprimidos da nossa nação, em uma definição bem abrangente. Não seria um modelo socialista, mas desafiaria o poder e as práticas dos agentes do capitalismo, insistindo na paz e na igualdade, consideraria a estatização do complexo financeiro e do setor de energia, além de desmilitarizar e tornar ''verde'' nossa economia e sociedade.
As condições dadas pela Grande Depressão induziram Franklin Delano Roosevelt e seus conselheiros — embora com um auxílio poderoso de uma coalizão liderada pelos sindicatos industriais e a multirracial classe operária americana — a reconfigurar o papel e as funções do Estado em proveito das pessoas comuns dos Estados Unidos. Deverámos retirar inspiração e energia deste exemplo e trilhar um caminho semelhante.
Sam Webb é presidente do Partido Comunista dos Estados Unidos
Fonte: Partido Comunista dos Estados Unidos