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Fala José Mujica, um uruguaio tranqüilo que soube esperar

José Mujica, lançado pelo Congresso da governista Frente Ampla como candidato a presidente do Uruguai, fala de sua guerrilha tupamara nos anos 60, de seus 13 anos preso (''Não era uma cela, era um poço''), de suas convicções e dos Estados Unidos. Veja a e

Depois de ganhar notoriedade como o guerrilheiro que liderou as operações dos Tupamaros, que custou-lhe treze anos de prisão, José Mujica, o senador uruguaio e possível candidato presidencial em 2009, tornou-se um paladino da ordem constitucional no seu país. E um dos favoritos da classe empresarial como um futuro presidente.

Em março passado, Mujica deixou o cargo de ministro da Agricultura ''para reforçar a bancada governista no Senado'', como afirma o comunicado de praxe. Ninguém deu crédito a essa explicação. Tudo indicava que Pepe – como o chamam familiarmente – queria se dedicar por inteiro a organizar os quadros de seu partido, a Frente Ampla, tendo em vista as eleições de 2009.

El Mundo:  Os jornais dizem que, juntamente com o futebolista Mateo Corbo, o senhor é a pessoa mais popular no Uruguai. O que você espera para se proclamar oficialmente candidato?

José Mujica: Estar na política é como estar em uma sala com muito de ruído e onde nunca se apaga a luz. Para um cara como eu, nascido e criado no campo, custa suportar a vida pública. Uma parte de minha carreira, por  assim dizer, foi tumultuada e cansativa ao extremo [refere-se ao período em que fez parte dos Tupamaros]. Quando fui me incorporado no marco formal, percorri o Uruguai por diversas vezes, de cabo a rabo. E agora querem que este velho assuma um novo desafio …

El Mundo: Como descendente de bascos, estamos interessados no que acontece nas terras de seus antepassados. E qual é sua opinião sobre a ETA.

Mujica: Acho que os meus avós eram da Cantábria [província espanhola que fica fora do País Basco, embora vizinha a ele]. No caso não importa: eu amo a Espanha por cima de minhas raízes e dos pleitos que a dividem. Não a Espanha da charanga e do pandeiro referiu António Machado [poeta espanhol, 1875-1939, jornalista e militante republicano), mas para aquela dos pequenos botequins de bairro e dos povoados banhados em luz, onde as pessoas se cumprimentam pelo nome.

El Mundo: Qual a sua opinião sobre a ETA?

Mujica: A ETA é a crónica de um litígio não resolvido. Ela é o testemunho de que os nacionalismos resistem veementemente a essa discreta evaporação das fronteiras – geográficas ou étnicas – trazida pela globalização.

El Mundo: O diário Wall Street Journal coloca o Uruguai como um exemplo de como um país pode funcionar bem quando o seu governo, no caso, o da Frente Ampla, abjura certos dogmas, como a socialização da economia ou o intervencionismo estatal…

Mujica: Eu não acho que o bom desempenho de um governo esteja em desacordo com a vocação de construir uma sociedade razoavelmente justa. Existem hoje na América Latina governos para todos os gostos, mas nenhum que tenha renunciado a buscar comida, moradia e cuidados de saúde para os mais necessitados. O mesmo acontece em países ricos. (…) Eu não sou um defensor de boicotar as importações, nem de deixar os agricultores entregues à própria sorte, mas tampouco de se governar com os olhos postos na redação do Wall Street Journal.

El Mundo: Quais foram as maiores conquistas do governo da Frente Ampla?

Mujica: Nós temos sido capazes de manter a disciplina fiscal, reativar o setor produtivo, atrair investimentos e fomentar a iniciativa privada, sem aumentar o fosso entre os rendimentos mais altos e os mais baixo. Juntamente com a Costa Rica, somos o país da América Latina com a distribuição de renda mais eqüitativa entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres. Propiciamos a recuperação da classe média, que foi a mais prejudicada pela crise em 2001.

El Mundo: Qual era preciso aquela guerrilha que o senhor organizou junto com Raul Sendic e Eleuterio F. Huidobro [líderes dos Tupamaros na luta antiditatorial]?

Mujica: A reconstrução da Europa, após a 2ª Guerra Mundial, acabou com o Uruguai mesocrático. Quando uma sociedade passa sem transição da abundância à escassez, o efeito psicológico é devastador. A classe política e o sistema de valores que a sustentava caía aos pedaços. A ultradireita se organizava para preencher o vácuo e diante deste dilema julgamos que era preciso tomar o poder.

El Mundo: Isto se chama oportunismo.

Mujica: Não, isto se chama idealismo. Pensávamos que pela via armada construiríamos um mundo melhor, sobre as ruínas da velha ordem. Depois, revelou-se que essa ordem era bem mais desordenada do que supúnhamos. (…) Se a sorte nos tivesse sorrido, teríamos entrado triunfalmente em Montevidéu, mas as agências multilaterais de crédito ou os grandes centros de saber tecnológico teriam ficado fora do nosso alcance.

El Mundo: Reconhece que o capitalismo derrotou a revolução?

Mujica: Eu faço uma distinção entre o capitalismo selvagem do salve-se quem puder e o liberalismo de raízes humanas que postulam o ''fair play'' como regra básica nas relações econômicas. Vou dizer algo que talvez o surpreenda: o velho liberalismo Inglês tratou bastante bem a nós uruguaios.

El Mundo: O senhor passou treze anos na prisão, em solitária, numa cela. Como conseguiu manter sua cordura?

Mujica: Não era uma cela, era um poço. Eu tive que aprender a disciplinar-me: inventava ferramentas e as aperfeiçoava com minha imaginação. Minha única companhia eram as formigas: aprendi que esses insetos gritam. Pode-se comprovar quando se aproxima o ouvido. Eu também aprendi que o homem tem recursos inesgotáveis para enfrentar a adversidade. É por isso que dói muito quando alguém se sente quebrado e renuncia à vida.

El Mundo: Para muitos latino-americanos, os Estados Unidos continuam a ser o vilão do filme. Compartilha desta visão?

Mujica: Os Estados Unidos são cúmplices de alguns dos capítulos mais negros da nossa história. E eu digo cúmplices porque a maior parte do tempo foram os oligarcas ou os militares crioulos [nativos], que abriram as portas para os marines, a CIA e as empresas mineradoras ou fruticultoras. (…) Eu não partilho a visão do vilão do filme porque essas classificações nada resolvem. Além disso, seria injusto colocar no mesmo saco a um líder da estatura de Martin Luther King e um verdadeiro desastre como George W. Bush.

* Esta entrevista foi feita em junho de 2008 no gabinete do senador, em Montevidéu. José Mujica foi lançado pelo Congresso da Frente Ampla, no fim de semana passado (16), como candidato presidencial nas eleições de 2009.