Lições capitalistas do velho comunista
Possivelmente você recebeu em sua caixa de mensagens a frase que está no alto desta página. Na semana passada, o mesmo e-mail em vários idiomas circulou o mundo com uma previsão típica de Nostradamus. Contudo, a “profecia” era assinada por Karl Marx, que
Publicado 17/03/2009 14:12 | Editado 04/03/2020 16:51
Mas, numa semana dominada por assuntos econômicos – reunião do Copom, divulgação do PIB do trimestre, reunião preparatória para o G20 -, a mensagem veio a calhar para aqueles que ainda procuram uma explicação para o turbilhão no mercado financeiro, coração do sistema capitalista. Embora apócrifa, a mensagem não deixa de suscitar uma questão: por que Karl Marx tem sido tão lembrando?
“Marx nunca foi tão atual”. Quem afirma é o doutor em história econômica e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), João Antônio de Paula, um dos maiores especialistas brasileiros na obra do filósofo e economista alemão.
“Enquanto o capitalismo existir, o marxismo será indispensável para entende-lo. Não há nenhum instrumento analítico que seja mais agudo e pertinente que a teoria marxista. Quando Marx escreveu suas teorias no século XIX elas eram apenas possibilidades. Mas a ideia de que o capitalismo seria um sistema mundial se confirmou, assim como os ciclos de desenvolvimento e crise. Por isso, eu acho que sua teoria é mais atual hoje do que quando ele era vivo”, diz João Antônio de Paula.
Segundo o professor, até mesmo o mercado financeiro, que em 1847 era um “gatinho” se comparado ao que é hoje, recebeu de Marx um estudo detalhado e preciso e fez do teórico um dos maiores conhecedores das formas financeiras.
“Foi ele quem cunhou a expressão ‘capital fictício’, que nada mais é que um fantasma. Imagine um fantasma. O que temos hoje é o fantasma do fantasma”, compara o professor. João Antônio explica que a causa da crise financeira internacional está exatamente na desproporção entre a riqueza real produzida – estimada pelo PIB mundial – e os títulos e ativos financeiros, lembrando que em 2006 esses ativos eram de US$167 trilhões, mais de quatro vezes o valor do PIB mundial, da ordem US$ 48 trilhões. “Os ativos não têm nenhuma correspondência com a riqueza produzida, por isso não se sustentam”.
Autofagia
A atualidade de Marx também está no fato de ter percebido, ainda no século XVIII, que o capitalismo promove o dinamismo econômico, a geração de riqueza, mas, por outro, esse mesmo movimento traz uma instabilidade que pode levar ao colapso.
“A crise é tanto a doença quanto o remédio para o capitalismo. É preciso que haja uma queima de capitais para que novamente o capital se concentre e produza mais riqueza. A crise no sistema é resultado dele mesmo: ao buscar o lucro, ele causa o prejuízo. O problema é que quem paga o pato nesse sistema é o trabalhador”, afirma. Esse reconhecimento do caráter crítico do capitalismo também levou a uma descoberta que se confirmou depois: a de que os altos e baixos do sistema iriam se dar em ciclos de oito a dez anos e que seriam definidos pela duração do capital físico.
Contrário ao que muitos analistas, entre eles alguns marxistas, têm dito, Marx não acreditava que o colapso do capitalismo fosse inevitável. “Crises permanentes não existem”, ele insistiu. Isto é, não existe crise econômica tão profunda da qual o capitalismo não possa recuperar-se, uma vez garantido que a classe trabalhadora pague o preço do desemprego, a deterioração dos padrões de vida e das condições de trabalho. Para que uma crise leve a “um estágio mais elevado de produção social” é preciso consciência e ação da classe trabalhadora.
Vai e vem
O professor João Antônio de Paula explica que o pensamento econômico é como uma gangorra. Houve uma grande regulação do sistema pelo Estado em 1929, o avanço do liberalismo na década de 70 e agora, frente à crise, os governos voltam a debater a necessidade de regulação do mercado financeiro.
“A estatização do sistema bancário, e mesmo do setor produtivo, já está acontecendo. Se for permitido, o capital vai até o limite. Daí vem uma crise que torna necessário recuperar o controle novamente. Vamos viver agora uma nova onda de intervenção. Essa é uma flutuação própria do sistema”, diz.
César Benjamin, cientista político e membro do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em artigo publicado pelo Centro de Mídia Independente, afirma que o mundo está vivendo “não é erro nem acidente”. Ao vencer os adversários, o sistema encontrou a sua forma mais plena e essencial.
Estado no centro da economia:
o “velho barbudo” tinha razão
“A moderna sociedade burguesa, uma sociedade que liberou tão formidáveis meios de produção e troca, é como a feiticeira incapaz de controlar os poderes ocultos desencadeados por seu feitiço.”
A bela imagem criada pelo pensador alemão no “Manifesto Comunista”, em 1848, descreve com grande poder de síntese os poderes que o capitalismo conseguiu desencadear e que, infelizmente, parece nunca ter conseguido controlar direito.
No entanto, mais do que falarmos da atualidade ou não do pensamento de Karl Marx (que, para mim, assim como Freud ou Nietzsche, nunca perdeu a atualidade), o que mais me chama a atenção nesta crise financeira é o papel que, irremediavelmente, o Estado voltará a desempenhar nas próximas décadas.
Durante mais de 30 anos, tivemos que ouvir aquela velha ladainha de que as nações só enriqueceriam se adotassem o Estado Mínimo. E que era fundamental a saída do dito cujo de vários setores da economia. País moderno era país com o mínimo Estado. Se a moda, que começou lá nos anos 80 com a senhora Thatcher e Mr. Reagan, ajudou a desmontar o “welfare state” em vários países europeus, entre nós, que nunca tivemos o bendito, este papo serviu de justificativa para processos imorais de privatização.
Com a cavalar crise econômica, fica então a pergunta: quem vai segurar a onda e, sobretudo, a ganância de tipinhos como Madoff? O próprio sistema financeiro? Ou o poder estatal? O Estado no centro da economia? É, o velho barbudo estava novamente certo. João Pombo Barile é redator do Magazine.
US$9 trilhões foram gastos até agora para debelar a crise do mercado financeiro
US$2,4 trilhões foi o total destinado pelo Estado durante toda a 2ª Guerra Mundial
Muitos equívocos em nome de Marx
Desde que foi lançada, há exatos 161 anos, com o Manifesto Comunista, a teoria marxista vem sofrendo uma série de interpretações que mais deturpam do que reelaboram seus princípios para a compreensão e transformação do sistema econômico.
Uma delas é a ideia que Marx era defensor da estatização em contraponto ao capitalismo. “Marx era meio anarquista, não tinha muito apreço pelo Estado. A estatização era só um instrumento para se chegar ao comunismo. O Estado deixaria de existir na medida que houvesse a livre associação dos produtores e o estabelecimento da democracia socialista”, diz João Antônio de Paula, doutor em história econômica.
Outra interpretação indevida das teorias marxistas foi feita pelo chamado “revisionismo”, uma corrente do movimento marxista que deu origem à social-democracia e que propunha uma evolução gradual do capitalismo através de reformas sociais até chegar a implantação do socialismo.
Mas a deturpação mais profunda foi feita pelo stalinismo. “Definiram como dogmas coisas que nada têm a ver com marxismo. Quando você diz, ‘precisamos de liberdade e igualdade, mas a igualdade é mais importante’, você está deturpando o marxismo”. Tanto na experiência soviética quanto na social democracia, a ideia central da obra de Marx, abolir as diversas formas de alienação – seja econômica, social ou política –, não passou de propaganda.
Relevância
As três principais correntes ideológicas do século XIX, nos três países mais avançados, tiveram a colaboração de Karl Marx: a filosofia clássica alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês.
A coerência e integralidade das suas ideias foram reconhecidas pelos próprios adversários e constituem o materialismo moderno e o socialismo científico. Em uma pesquisa, realizada pela BBC, em 2005, Carl Marx foi eleito o maior filósofo de todos os tempos. A grande obra de Karl Marx é “O Capital”, de 1867.
Por Andréa Castello Branco, publicado no portal O Tempo em: 15/03/2009