Sem categoria

Alexandre Pilati: Onde está a fraude?

*

A mídia alardeou as críticas que a escritora Edna O’Brien teria feito a Chico Buarque durante a Festa Literária de Paraty – FLIP. A autora irlandesa teria participado, na FLIP, de um jantar com jornalistas, durante o qual teria afirmado que se espantou com a empáfia e o desconhecimento literário de Chico, e, entre outros impropérios, teria dito que o compositor é uma fraude literária.


 



Muitos cantaram loas a Edna O’Brien, que, com seu olhar cosmopolita, teria desmascarado a fraude provinciana que uma boa claque de jornalistas ignorantemente cultos já denunciava desde o primeiro romance de Chico. Do primeiro mundo, nos dizem, como sói acontecer, o que é ou não é conhecimento literário. E normalmente o que presta está lá, não aqui. Para os jornalistas descolados que cuidam de “cultura” nos cadernos magros e vendidos dos jornalões, trata-se de um prato cheio.


 



Mas onde está a fraude aqui neste episódio? Primeiro: a fraude não é Chico. Edna pode até ter tido essa impressão. Ao que se sabe ela foi arrastada a um encontro com ele e Milton Hatoum. É provável que, além do mais, nosso bom e velho Chico tenha brilhado mais do que os estranjas. Mais até do que a própria Edna O’Brien. Chico cresceu em um ambiente intelectual. Lembremos que ele é filho de um dos homens mais cultos (no bom sentido) do Brasil – o grande Sérgio Buarque de Hollanda. É provável então que se possa criticar Chico por várias coisas, menos pelo seu “desconhecimento literário”. Mas Chico não precisa de defesa. Seu Leite derramado é um grande livro e ponto final. Digam o que quiserem – é a sua melhor obra de ficção.


 



Segundo: a fraude não é Edna O’Brien. Não a conheço. Não li seus livros. Mas pelo visto, vindo da terra de Joyce e o admirando tanto (ela é autora de uma breve biografia do autor de Ulisses), trata-se de uma autora de respeito. Talvez do tamanho de Chico, só que nascida na Irlanda. Lá o papo é com Joyce. Aqui temos o nosso Machado, que Chico releu tão bem no Leite derramado. Empatou. Edna O’Brien não é uma fraude só por que disse umas besteiras. Alguém que tem livros queimados por ter se posicionado contra a Igreja do seu país merece respeito. Se ela é ignorante em termos de literatura brasileira, não é uma fraude literária. Edna O’Brien veio à FLIP para dar “testemunho de uma escrita inseparável de seu lugar de origem”, mas não entendeu que o caso de Chico é o mesmo. Sua escrita, em Leite derramado, é inseparável do Brasil.


 



A irlandesa atirou no que viu e acertou no que não viu. Fraude mesmo é a FLIP. Uma festa que reúne best sellers e alguns bons autores e os bota frente a frente com um público que se deleita mais com o espetáculo que com a literatura. As personalidades (celebridades) nessa festa são mais importantes do que seus textos. Daí a impressão de Edna O’Brien sobre Chico. Chico na FLIP é uma fraude. Edna O’Brien na FLIP é uma fraude. Não por eles. Pela futilidade que o formato do encontro encerra.


 



Como para a maioria dos jornalistas culturais, cultura é personalidade, é espetáculo. Alguns deles concordaram com Edna O’Brien, sedentos da carniça que lhes pouparia da leitura refletida de obras literárias, que é, afinal para que se escreve. Outra parte saiu em defesa de Chico, mas pelos motivos errados: Chico é bonito, tem olhos azuis e fez lindas canções que se cito para impressionar namoradas.


 



Então o engodo está nesse mix midiático: festa de celebridades e imprensa cultural que fofoca. Manda-se, assim, a literatura por água abaixo e não se abre espaço para Edna O’Brien perceber que Chico é um autor respeitável e que ela também é vítima de uma fraude.