Blade Runner: uma metáfora do mundo neoliberal
Estamos às vésperas da comemoração dos trinta anos da estréia (em 1981) do filme Blade Runner, uma renovadora obra de ficção científica que antecipou a precarização do trabalho, o poder extraordinário dos executivos de grandes corporações capitalistas e deu vida, nos androides geneticamente preparado para árduo trabalho escravo, ao sonho empresarial de um trabalhador eficiente, programado e descartável.
Publicado 31/12/2010 14:01
O texto reproduzido abaixo foi retirado do livro Condição Pós-Moderna, do marxista norte-americano David Harvey, publicado originalmente em 1989 e traduzido no Brasil em 1992.
A história de Blade Runner se refere a um pequeno grupo de seres humanos geneticamente produzidos, chamados “replicantes”, que voltam para enfrentar seus criadores. O filme é situado na Los Angeles de 2019 e gira em torno da investigação do “especialista” Deckard, destinada a descobrir a presença dos replicantes e eliminá-los ou “retirá-los de circulação” (como diz o filme) como um sério perigo para a ordem social. Os replicantes foram criados com o propósito específico de trabalhar em tarefas altamente especializadas em ambientes particularmente difíceis nas fronteiras da exploração espacial. Eles são dotados de força, de inteligência e de poderes que estão no limite, ou até além deles, dos seres humanos comuns. Também têm sentimentos; somente assim, ao que parece, podem adaptar-se à dificuldade de, em suas tarefas, fazer julgamentos que correspondam aos requisitos humanos. Porém, temendo que eles possam em algum momento representar uma ameaça à ordem estabelecida, seus fabricantes lhes deram um tempo de vida de apenas quatro anos; quando escapam ao controle durante esses quatro anos, é preciso “retirá-los”. Mas fazer isso é tão perigoso quanto difícil, justamente por causa de sua capacidade superior.
Deve-se observar que os replicantes não são meras imitações, mas reproduções totalmente autênticas, indistinguíveis em quase todos os aspectos dos seres humanos. São antes simulacros do que robôs. Foram projetados como a forma última da força de trabalho de curto prazo, de alta capacidade produtiva e grande flexibilidade (um exemplo perfeito de um trabalhador que possua todas as qualidades necessárias à adaptação a condições de acumulação flexível) mas como todos os trabalhadores diante da ameaça de uma vida de trabalho encurtada, os replicantes não aceitam felizes as restrições de seu curto tempo de vida. Seu propósito ao procurar os fabricantes é tentar encontrar meios de prolongar sua vida, infiltrando-se no coração do aparelho produtivo que os fez e, ali, persuadindo ou forçando seus criadores a reprogramarem sua estrutura genética. Seu projetista, Tyrell (chefe de um vasto império corporativo com esse mesmo nome), diz a Roy, o líder dos replicantes, que termina por penetrar no centro de tudo, que os replicantes têm uma recompensa mais do que adequada para a brevidade de sua vida – afinal, vivem com a mais incrível intensidade. “Aproveite”, diz Tyrell, “uma chama que queima com dupla intensidade vive a metade do tempo”. Os replicantes existem, em resumo, na corrida esquizofrênica do tempo que [Frédric] Jameson, [Giles] Deleuze e [Félix] Guattari e outros vêm como algo tão central na vida pós-moderna. Eles também se movem num espaço com uma fluidez que lhes dá um imenso arcabouço de experiência. Sua persona equivale em muitos aspectos ao tempo e ao espaço das comunicações globais instantâneas.
Revoltados com suas condições de “trabalho escravo” (como Roy, o líder, o denomina) e buscando prolongar seu tempo de vida, quatro replicantes chegam a Los Angeles, lutando e matando, cidade em que o “blade runner” Deckard, um especialista em métodos de detecção e retirada de replicantes que escapam, é convocado a tratar deles. Embora cansado de toda matança e violência, Deckard é obrigado a deixar o repouso da aposentadoria, pois as autoridades só lhe dão duas opções: aceitar a tarefa ou sofre sua redução a “pessoa inferior”. Portanto, tanto ele como os replicantes têm com o poder social dominante na sociedade uma relação semelhante; essa relação define um vínculo oculto de simpatia e de compreensão entre os caçados e o caçador. Durante o filme , a vida de Deckard é salva duas vezes por um replicante, enquanto ele salva a vida de um quinto, uma replicante recém-criada e ainda mais sofisticada chamada Rachel, por quem Deckard eventualmente se apaixona.
A Los Angeles a que os replicantes retornam dificilmente é uma utopia. A flexibilidade da capacidade dos replicantes de trabalhar no espaço exterior tem como contraparte em Los Angeles, como recentemente passamos a esperar, uma paisagem decrépita de desindustrialização e decadência pós-industrial. Armazéns vazios e instalações industriais abandonadas são destruídos por uma chuva ácida. A névoa toma conta de tudo, o lixo se empilha por toda parta, as infraestruturas estão num estado de desintegração que torna suaves os caldeirões e as pontes destroçadas da Nova York contemporânea. Punks e catadores de lixo brigam no meio do lixo, roubando o que podem. J.F. Sebastian, um dos projetistas genéticos que termina por facilitar o acesso dos replicantes a Tyrell (e que sofre de uma doença de envelhecimento prematuro chamada “decrepitude acelerada”), vive sozinho num espaço vazio desses (na verdade, uma versão abandonada do prédio Bradbury, construído em Los Angeles em 1893), cercado por um fantástico conjunto de brinquedos e bonecos mecânicos e falantes que lhe fazem companhia.
Mas, acima das cenas de caos e decadência interiores e no nível da rua, há um mundo de alta tecnologia de velozes transportadores, de publicidade (“uma oportunidade de comprar outra vez numa terra dourada”, proclama um anúncio que circula no céu enevoado e chuvoso), de imagens familiares do poder corporativo (a Pan Am, surpreendentemente ainda funcionando em 2019, a Coca-Cola, a Budweiser etc.), e o imenso prédio piramidal da Tyrell Corporation, que domina uma parte da cidade. A Tyrell Corporation é especializada em engenharia genética. “O comércio”, diz Tyrell, “mais humano do que humano é o nosso negócio”. Opondo-se a essas imagens do poder corporativo avassalador, há no entanto outra cena no nível da rua de fervilhante produção em pequena escala. As ruas da cidade estão cheias de todo tipo de pessoas – os chineses e asiáticos parecem predominantes, e é o rosto sorridente de uma japonesa que anuncia a Coca-Cola. Surgiu uma língua, o “cidadês”, um híbrido de japonês, alemão, espanhol, inglês, etc. Não somente o “terceiro mundo” chegou a Los Angeles ainda mais do que agora, como sinais de sistemas de organização do trabalho e de práticas de trabalho informais do terceiro mundo estão por toda parte. As escamas de uma cobra geneticamente produzida são feitas em um a pequena oficina, e olhos humanos são produzidos em outra (ambas dirigidas por orientais), o que indica intrincadas relações de subcontratação entre empresas altamente desagregadas e com a própria Tyrell Corporation.
O sentido da cidade no nível da rua é caótico em todos os aspectos. Os projetos arquitetônicos são uma mixórdia pós-moderna – a Tyrell Corporation está abrigada em algo que parece uma réplica de uma pirâmide egípcia, colunas gregas e romanas se misturam nas ruas com referências à arquitetura maia, chinesa, oriental, vitoriana e contemporânea (dos shoppings). Os simulacros são legião. Corujas geneticamente reproduzidas voam, e cobras escorregam pelos ouvidos de Zhora, uma replicante geneticamernte reproduzida, enquanto esta se apresenta num cabaré que parece uma imitação perfeita dos da década de 20.
O caos de signos, de mensagens e significações concorrentes, sugere, no nível da rua, uma condição de fragmentação e incerteza que acentua muitas das facetas da estética pós-moderna descritas na Parte I [deste livro]. A estética de Blade Runner , diz [G.] Bruno (no artigo “Ramble city: postmodernism and Blade Runner – algo como A cidade errática: pós-modernismo e Blade Runner – de 1987) é o resultado “da reciclagem, da fusão de níveis, dos significantes descontínuos, da explosão de fronteiras e da erosão”. No entanto, há também um forte sentido de algum poder organizador oculto – a Tyrell Corporation, as autoridades que encarregam Deckard de sua tarefa sem lhe dar escolha, a rápida descida das forças da lei e da ordem quando é necessário estabelecer o controle da rua. O caos é tolerado, justamente porque é pouco ameaçador para o controle geral.
Há por toda parte imagens de destruição criativa. Elas estão mais fortemente presentes, com efeito, na figura dos próprios replicantes, criados com poderes maravilhosos só para serem destruídos prematuramente e com certeza “retirados” caso se envolvam de fato com seus próprios sentimentos e tentem desenvolver suas próprias capacidades à sua maneira. As imagens de decadência que permeiam tudo o que há na paisagem reforçam exatamente essa estrutura de sentimento. O sentido de abalo e de fragmentação da vida social é acentuado numa incrível sequência em que Deckard persegue uma das replicantes, Zhora, pelos espaços apinhados, incoerentes e labirínticos da cidade. Encontrando-a finalmente numa arcada cheia de lojas exibindo suas mercadorias, ele lhe dá um tiro nas costas, e ela vai caindo e quebrando camadas e mais camadas de portas e janelas de vidro, morrendo enquanto faz pedaços de vidro voarem em mil e uma direções no seu salto final por uma enorme janela.
Procurar replicantes depende de certa técnica de interrogatório, que se baseia no fato de eles não terem uma história real, eles foram criados geneticamente como adultos crescidos, faltando-lhes a experiência de socialização humana (um fato que também os faz potencialmente perigosos caso fujam do controle). A questão chave que expõe um dos replicantes, Leon, é: “Fale-me de seus sentimentos com relação a sua mãe”. Ele responde: “Deixe-e falar sobre a minha mãe” e atira em quem faz a pergunta. Rachel, a mais sofisticada replicante, tenta convencer Deckard de sua autenticidade como pessoa (depois de suspeitar que Deckard percebera seus outros artifícios) produzindo a fotografia de uma mãe e uma garotinha que dizia ser ela. A questão aqui, na perceptiva observação de Bruno, é que as fotografias são feitas agora como provas de uma história real, pouco importando qual possa ter sido a verdade dessa história. A imagem é, em resumo, prova da realidade, e as imagens podem ser criadas e manipuladas. Deckard descobre grande número de fotografias nas mãos de Leon, presumivelmente destinadas a documentar que ele também tem uma história. E Rachel, vendo as fotografias familiares de Deckard (e é interessante que o único sentido da história que temos de Deckard seja fornecido por suas fotografias) tenta adequar-se a elas. Ela passa a usar o cabelo no estilo das fotografias, toca piano como se estivesse num quadro e age como se soubesse o que significa um lar. É essa vontade de buscar a identidade, o lar e a história (a semelhança com as ideias de Bachelard sobre a poética do espaço é quase perfeita aqui) que termina por levar à suspensão temporária de sua “retirada”. Deckard por certo se comove com isso. Mas ela só pode reentrar no reino simbólico de uma sociedade verdadeiramente humana reconhecendo o poder irresistível da figura edipiana, o pai. Esse é único caminho que ela pode tomar para ser capaz de responder à pergunta “Fale-me sobre sua mãe”. Ao sujeitar-se a Deckard (confiando nele, condescendendo com ele e, em última análise, submetendo-se a ele fisicamente), ela aprende o sem tido do amor humano e a essência da sociabilidade comum. Ao matar o replicante Leon quando este está prestes a matar Deckard, ela fornece a prova última da capacidade de agir como mulher de Deckard. Ela escapa ao mundo esquizoide do tempo e da identidade replicantes para entrar no mundo simbólico de Freud.
Mas não creio que Bruno esteja certo quando contrasta o destino de Roy e de Rachel com base na disposição de Rachel de submeter-se à ordem simbólica e na recusa de Roy a fazê-lo. Roy está programado para morrer logo, e nenhum adiamento ou salvação são possíveis. Sua exigência de superar todo o desperdício de sua própria condição simplesmente não pode ser atendida. Sua raiva, vem como a dos outros replicantes, é fenomenal. Chegando a Tyrell, Roy primeiro o beija antes de arrancar-lhe os olhos, matando seu criador. Bruno interpreta isso, com razão, como uma reversão do mito de Édipo e como um claro indício de que os replicantes não vivem no quadro de uma ordem simbólica freudiana. Isso não significa, todavia, que os replicantes não tenham sentimentos humanos. Já vimos algo da capacidade de sentir de Roy em sua resposta comovente e muito afetuosa à morte da replicante Pris, morta por Deckard em meio às réplicas de J. F. Sebastian. A subsequente perseguição de Roy por Deckard, que cedo se transforma na caça perseguindo o caçador, culmina com Roy evitando, no último momento, que Deckard caia de um alto prédio na rua. E é quase exatamente nesse momento que Roy chega ao seu fim programado.
Mas, antes de morrer, Roy conta parte dos prodigiosos eventos de que participou e das coisas que viu. Ele verbaliza sua raiva por sua condição de cativeiro e de perda que permite que toda a sua incrível intensidade de experiência seja “levada pelo tempo como lágrimas na chuva”. Deckard reconhece o poder dessas aspirações; os replicantes, reflete ele, são bem iguais à maioria de nós. Eles querem simplesmente saber “de onde vêm, para onde vão e quanto tempo têm”. E é com Rachel, que não foi programada para morrer em quatro anos, que Deckard foge, depois que os outros quatro replicantes estão mortos, para uma paisagem natural de florestas e montanhas em que o sol, nunca visto em Los Angeles, brilha. A replicante se tornou um simulacro de tamanha perfeição que ela e o ser humano podem se lançar aos seus próprios futuros, embora ambos fiquem “imaginando quanto tempo temos”.
Blade Runner é uma parábola de ficção científica em que temas pós-modernos, situados num contexto de acumulação flexível e de compressão do tempo-espaço, são explorados com todo o poder de imaginação que o cinema pode mobilizar. O conflito ocorre entre pessoas que vivem em escalas de tempo distintas e que, como resultado, veem e vivem o mundo de maneira bem diferente. Os replicantes não têm história real, mas talvez possam fabricar uma; a história foi, para todos, reduzida à prova da fotografia. Embora a socialização ainda seja importante para a história pessoal, também ela pode, como mostra Rachel, ser replicada. O lado depressivo do filme é justamente que, no final, à diferença entre os replicantes e o ser humano fica tão irreconhecível que eles podem até se apaixonar um pelo outro (uma vez que ambos entrem na mesma escala temporal). O poder do simulacro está em toda parte. O mais forte vínculo social entre Deckard e os replicantes revoltados – o fato de um e outro serem controlados e escravizados por um poder corporativo dominante – nunca fornece o menor indício de que uma coalizão dos oprimidos possa ser forjada entre eles. Embora os olhos de Tyrell sejam arrancados durante sua morte, trata-se de um ato de raiva pessoal, e não de classe. O final do filme é uma cena de claro escapismo (tolerada, deve-se notar, pelas autoridades) que deixa como estão tanto o problema dos replicantes como as péssimas condições da frenética massa humana que habita as ruas criminosas de um mundo pós-moderno decrépito, desindustrializado e decadente.