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América Latina: avanços, desafios e perspectivas para a região

Em entrevista à Adital, o historiador e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Gerson Ledezma, traz à pauta questões relevantes para a América Latina: situação socioeconômica, atuação dos governos considerados progressistas, perspectivas para movimentos sociais, características dos movimentos indígenas e especificidades da luta dos latino-americanos.

Por Camila Queiroz

Como historiador, Gerson demarca, logo de início, que cabem muitas realidades na região. Economicamente, alguns países no Cone Sul vivenciam avanços – Chile, Brasil, Argentina. Por outro lado, para as comunidades indígenas ou originárias, com uma importante visão de mundo que se contrapõe ao modo de vida capitalista, a situação melhorou nos países da região andina. Já no Brasil, Paraguai, Guatemala, El Salvador e Nicarágua "continuam a cada dia menos visíveis e mais marginalizados”.

Sobre os governos progressistas, considera que são, na verdade, "populistas no bom sentido", mas avisa: "com certeza, quando deixarem de cumprir com a aliança entre povo e líder, cairão". .

Essa situação nos leva a pensar na ideia de progresso, de tempo, de história. Convencidos de que a América Latina um dia pode chegar a ser moderna e participar da civilização europeia, ocidental, de um futuro brilhante, esquecemos que para o continente as coisas são diferentes. Aqui, a história parece mostrar que o futuro não é sinônimo de progresso, de felicidade. Quando pensamos que avançamos, algum fato nos indica que retrocedemos, quando a nossa noção de tempo nos diz que estamos no século XXI, os problemas que se eternizam desde a época colonial ou o século XIX, nos faz refletir sobre a nossa dita modernidade. Iniciar um século, um milênio ou uma década pode ser sinônimo de esperança, só que o término desse século, desse milênio, dessa década ou desse ano, torna-se, muitas vezes, cruel, e percebemos então que devemos recolocar o nosso futuro nas próximas construções temporais. Confira a entrevista

Adital: Fala-se muito nas mudanças geradas pela ascensão de governos de esquerda na região desde a década passada. Como você avalia esses governos? Que mudanças significativas promoveram ou deixaram de promover e que caminhos se vislumbram para eles?
Gerson Ledezma: Encaro esses governos como populistas, no sentido feliz do termo. Penso que esse tipo de fenômeno sempre volta a se repetir para o caso da América Latina enquanto os problemas sociais continuarem presentes. Esses movimentos cumpriram e continuam cumprindo o seu papel: promover os setores populares e dar-lhes um lugar protagônico, em aberta luta contra o imperialismo, o capital estrangeiro ao promover o nacionalismo. No século 20, mantiveram total guerra também contra o comunismo ou contra as políticas estalinistas. Mas hoje continuam a se diferenciar dos regimes socialistas de corte marxista. Cumpriram e continuam cumprindo uma missão social: acesso à saúde, à educação, à terra e defesa da diversidade cultural, tal como nos modelos clássicos populistas da Ásia e da África de onde retomam diferentes visões. Os populismos permanecem enquanto sabem lidar com os interesses de diferentes camadas da sociedade e pressões vindas de vários setores, como a Igreja, a burguesia nacional, os militares, as classes médias, altas e populares. Estes atuais, com certeza, quando deixarem de cumprir com a aliança entre povo e líder, cairão.

Adital: Megaprojetos de infraestrutura, "guerra" ao narcotráfico, precarização do trabalho, migrações, militarização, luta pela terra… Que questões mais afetam os povos latino-americanos e, nesse sentido, quais estarão no centro das demandas dos movimentos sociais?
GL: Como falado anteriormente, são vários os problemas que continua enfrentando o povo latino-americano. Mas um que me preocupa é a proliferação de igrejas e com estas o acirramento dos preconceitos. Criados pela sociedade colonial e a Igreja católica, os mais graves preconceitos ultrapassaram os séculos 19 e 20, chegando até hoje, promovidos pela visão de mundo do Papa e da sociedade conservadora que ainda predomina na América Latina. Esta tem impedido avanços radicais, esta sociedade conservadora derrotou o comunismo, a guerrilha, o Che Guevara. Esta sociedade conservadora preferiu o populismo e não o socialismo e menos o comunismo.

Os movimentos sociais sabem lutar por diferentes causas: terra, trabalho, saúde, moradia, vias de comunicação, educação, mas deveriam articular-se ainda mais para que os estados nacionais adotem medidas a favor da autonomia cultural, da diversidade racial, sexual, etc. Não concordo com o caso cubano que, no final da luta, e depois de vencida a batalha contra o sistema antigo e ter-se adotado diferentes medidas a favor da reforma urbana, agrária, da educação, da saúde, poucas ou nenhuma medidas adotaram-se em detrimento dos preconceitos, do conservadorismo, das travas ainda coloniais que em toda América Latina nos submetem ao passado e não ao futuro, que nos impedem de sermos modernos, no bom sentido do termo.

Adital: Gostaria que você comentasse, no cenário dos movimentos sociais da América Latina, o papel dos movimentos indígenas, suas principais características e contribuições à luta social.
GL: Muito significativo o papel dos movimentos indígenas ou povos originários, como muitos deles preferem ser chamados. Seu papel tem sido primordial na luta pela terra, pela liberdade e pela dignidade. Convencidos de ser originários deste continente desde antes da invasão europeia, eles têm construído um discurso identitário que ligado a traços culturais lhes dá força e visibilidade na luta pelas diferentes reivindicações nos últimos dois séculos. O discurso indígena vai contra vários discursos hegemônicos, elitistas e acadêmicos que tenta retirar-lhes sua força ao negar as identidades e as culturas que eles se atribuem, e poder, assim, despojá-los das ferramentas que os constroem em aberta luta contra os imperialismos, contra o neoliberalismo e contra a globalização.

Retirando a força depositada na cultura e na identidade, os grupos originários poderiam ser pensados então como parte da chamada aldeia global, cidadãos do mundo, mestiços, híbridos e apenas consumidores como todos. Mas sua força e luta, desde cem anos atrás quando explodiu a Revolução Mexicana, os tem mostrado resistentes não à modernidade, ao capitalismo o qual muitas destas comunidades compartilham, mas das injustiças que esses projetos levam consigo. Sua importância radica em que mostram para os latino-americanos que existem formas de descolonização do poder e do saber. Os indígenas mostram que não é de seu interesse pertencer ao chamado Primeiro Mundo, à civilização ocidental e à modernidade tal como pregada pelo capitalismo. Ensinam diferentes modos de pensar a cultura e a identidade como mecanismos para sair do mundo da imitação, do consumo e do colonialismo a que comunidades mestiças, grupos de intelectuais e classe médias e altas se tem submetido em razão de querer pertencer a um mundo alheio.

Adital: Uma forte crise econômica assola a Europa e faz a sociedade despertar, mobilizando-se de uma maneira há muito não vista no velho continente. Para o cenário socioeconômico latino-americano, o que se pode esperar?
GL: A crise social e as lutas na Europa não terão muitas repercussões na América Latina, no sentido de servir como modelo ou incentivo a levantes desse tipo. América Latina tem uma dinâmica própria. Os problemas a que os europeus estão sendo submetidos de perda de garantias sociais, trabalhistas etc., fazem parte há muito tempo dos problemas dos latino-americanos. A crise econômica, em si, trará para os capitalistas da América Latina as mesmas repercussões de sempre. Assim como as outras vivenciadas neste mesmo século, vai depender da forma como cada economia esteja ou não preparada para enfrentar esses ciclo.

Fonte: Adital