Entrevista: Antonio Califano e os movimentos de base italianos

Em paralelo à tentativa de unificação da esquerda italiana, o professor Antonio Califano considera fértil a proliferação de movimentos de base na Itália. “Pertenço à geração política do 1968 italiano”. Assim começou a entrevista com Antonio Califano, 63 anos, militante orgânico da esquerda e que, mesmo diante de um quadro confuso nos atuais partidos de esquerda naquele país, se mantém ativo nos rumos da luta política.

Por Railídia Carvalho

O professor Antonio Califano e o quadro de Milo Manara

Tonino, como é conhecido entre os mais próximos, começou a trajetória política nos primeiros partidos marxistas-leninistas italianos. Entre as organizações que integrou estão A Luta Continua e Democracia Proletária”, quando fez parte do secretariado nacional, responsável pela área de Política Internacional especialmente América Latina e Oriente Médio.

Apesar de algumas visitas ao continente Latino-Americano, Tonino nunca esteve no Brasil mas tenta, na medida do possível, acompanhar os acontecimentos. “Aqui a televisão e o cotidiano tentam passar uma imagem negativa da Dilma”, diz. E completa: “A imagem que fica do Brasil é que há uma crise no modelo progressista”.

Aliás, a palavra crise foi muito usada por Tonino para se referir aos partidos e formações da esquerda italiana. Critica a aliança da esquerda com o Partido Democrático, do primeiro-ministro Matteo Renzi. “Não é mais um partido de esquerda. É outra coisa”.

Por outro lado, ele diz que, em meio a crise, têm surgido na Itália inúmeros movimentos de base e aponta uma assembleia no mês de novembro como estratégica para o movimento de unificação das esquerdas, e talvez a formação de um novo partido.

Além de dirigir atualmente uma revista de aprofundamento teórico e cultural chamada Decanter http://www.decanteronline.it/ (que completa dez anos em 2015), Tonino faz parte do corpo dirigente da organização L’Altra Europa Com Tsipras. Durante a entrevista, na casa dele, na cidade de Potenza, região da Basilicata, no sul da Itália, Tonino posou para a reportagem diante de um quadro em homenagem a Che Guevara do cartunista italiano Milo Manara.

Apesar de dizer que são poucas as notícias que chegam sobre o Brasil à exceção das notícias negativas do governo Dilma e do futebol, Tonino demonstrou conhecimento sobre música (citou Caetano Veloso, Chico Buarque), cinema (é admirador da “cinematografia revolucionária” de Glauber Rocha) e ídolos da seleção brasileira de 1958 e 1962 como Djalma Santos.

Falou sobre a presença ostensiva dos meios de comunicação e a forma como manipulam a opinião pública, especialmente nos casos dos imigrantes que chegam fugindo das guerras em países como a Síria, por exemplo. “Querem alimentar com o tema dos migrantes um voto de direita na Europa”.

Vermelho: Como você avalia a atual situação da esquerda italiana?

Antonio Califano: É um momento muito difícil porque todas as organizações políticas surgidas depois dos anos 1970 mudaram e estão em crise. Na minha opinião, a crise de hoje se acentua com a vitória eleitoral do Partido Democrático (PD), que vem da história do partido comunista, mas tem um percurso que não é mais de um partido de esquerda. É um partido mais centrista e conservador que representativo das classes sociais populares. É o partido da austeridade na Itália.

Isto tem provocado uma série de problemas porque o PCI, que era reformista, porém havia sempre uma perspectiva operária, de transformação. Era o grande partido comunista do ocidente. A crise do PCI de certa forma encerrou uma história na Itália, que era a história da luta republicana e de resistência, e isso tem criado um vazio politico. Com o fim do PCI surgiram vários partidos, o mais importante foi a Refundação Comunista que agora, todavia, vive uma situação de incerteza em relação ao plano eleitoral.

Como se encontra hoje a Refundação Comunista?

A Refundação Comunista é uma cisão do PCI quando este muda de nome para Partido Democrático de Esquerda em 1990. A Refundação se torna um grande sucesso eleitoral nos primeiros anos, mas entra em crise porque a esquerda italiana se cinde continuamente. Atualmente resta uma pequena formação da Refundação, que não tem deputados. Da Refundação derivou-se uma outra organização que se chama Sinistra Ecologia Liberta (SEL) e que nas últimas eleições conseguiu mais de 30 deputados, mas agora a sua aliança com o Partido Democrático está em crise (no parlamento, a SEL atua como oposição).

Atualmente há uma tentativa de reunir todas as forças da esquerda italiana: Refundação, L’Altra Europa, SEL. Mas é muito complicado e essa dificuldade vem dos grupos dirigentes destes pequenos partidos, cujos integrantes são interessados em conservar pequenas posições nos níveis de governo local. Existe também na Itália um outro processo de agregação que se chama Coalizão Social, que não é uma formação política, mas um fórum de debates que favorece uma agregação política e que surge a partir da proposta da FIOM, que é o mais importante sindicato dos metalúrgicos da Itália.

Neste mês haverá um encontro para reunir as forças e em novembro uma assembleia nacional com todas as formações de esquerda para tentar criar um novo partido político. Todavia, temos dois problemas que precisam ser superados. É necessária uma renovação completa do grupo dirigente, que precisa superar a luta interna de facções. Outro problema é a aliança das forças de esquerda com o PD, de Renzi, porque é uma formação que tem uma ambiguidade de fundo e que não é mais um partido de esquerda. É outra coisa.

Como você vê a vitória de Tsipras na Grécia. É uma boa notícia para a esquerda europeia?

Sim. Mas a primeira vitória do Syriza era simbolicamente uma boa notícia porque foi uma vitória contra o Memorandum imposto pela Europa e contra a austeridade. Agora quando o governo de Tsipras aceitou, dentro da melhor realidade, na avaliação deles, as recomendações da Europa houve um racha no Syriza, mas as últimas eleições de setembro confirmaram a liderança de Tsipras. A experiência é positiva, porém digamos que não é da Grécia, que é um pais muito pequeno, que vai vir a solução do problema de direção política e econômica da Europa; mas acompanhamos com muito interesse o movimento político naquele país. Todavia a situação social na Grécia é muito complicada e Tsipras, mesmo contra suas convicções, teve que aceitar as recomendações da Europa mas ele não poderia fazer diferente, no entanto, isso tem apresentado claras contradições. Esta divisão se revelou também em L’Altra Europa com Tsipras no que que se refere às decisões nos temas de politica econômica entre Grécia e União Europeia.

Como são os meios de comunicação de esquerda na Itália? No Brasil não temos jornais de esquerda de circulação nacional como é o caso de O Manifesto, na Itália.

Na Itália sempre tivemos uma tradição democrática com jornais de esquerda. O Manifesto é importante porque nasce no fim dos anos 1960. Sempre houve uma imprensa independente. O fenômeno negativo é que nos últimos anos a imprensa está manipulada pelo poder público e privado. Com exceção do jornal O Manifesto, o resto é propaganda institucional ou de direita, ou de oposição da direita, que é o grupo Berlusconi, ou está na linha do governo como no caso do La República, que parece o jornal do Chefe do Governo. O Corriere Della Sera é muito ligado as associações das empresas industriais. As televisões são todas subordinadas. Três canais televisivos pertencem a Berlusconi e outros apoiam o governo.

Uma situação muito diferente dos anos 1960, 1970 em que havia uma imprensa mais livre, com um papel inferior da TV. Hoje não há, com exceção de O Manifesto. Todavia devemos considerar que hoje o mundo da imprensa segue uma tendência para fazer o jornalismo pela internet. E muitos jornais hoje só podem continuar com tiragem impressa porque tem contribuições públicas. Por exemplo, o Corriere della Sera, jornal antiquíssimo de tradição liberal está sob o controle do governo, não é livre, porque ele também pega contribuições como os outros cotidianos.

Vivemos uma situação semelhante no Brasil com a Rede Globo de Televisão monopolizando as transmissões e manipulando notícias.

É como na Itália. Não era mas está ficando assim também. Em toda a Europa está ficando dessa maneira.

Que notícias sobre o Governo Dilma chegam na Itália?

A televisão e o Cotidiano falam sobre a crise do PT e tentam passar uma imagem negativa de Dilma. O único jornal que dá notícias é O Manifesto mas são notícias pequenas. Nós sabemos pouco do Brasil. Sabemos que é um país emergente e do ponto de vista econômico que está crescendo e sabemos do futebol do Brasil. Nós sabemos só isso sobre o Brasil, mas porque isso acontece? Isso acontece com os países de toda a América Latina, a comunicação sobre a América Latina está nesta condição porque hoje não existe mais aquela grande rede de solidariedade com a América Latina que era ligada a partidos de esquerda e que informava sobre a situação social e política dos países. Hoje não temos mais isso.

A Informação que temos é toda manipulada, CNN, Sky americana. A imagem do Brasil é que há uma crise do modelo progressista. Qualquer pequena notícia mas nem sempre fiel a realidade é aquela que é publicada em O Manifesto. Por exemplo, outro dia está em O Manifesto a notícia do impeachment de Dilma e você me disse que não era verdade. Mas não por culpa de O Manifesto. Por exemplo, eu participei do primeiro congresso da Frente Sandinista como responsável internacional da Democracia Proletária e na Nicarágua estavam companheiros italianos que moravam no pais e que ofereceram notícias sobre a situação do pais. Eles viviam lá e davam as notícias. Hoje esta rede de informação não existe mais.

A única comunicação internacional da América Latina é da igreja. Uma vez tivemos companheiros que viviam em Cuba que ofereceram informação direta. Hoje sabemos que o continente latino americano vive uma inversão do quadro político, uma situação invertida ao que aconteceu na década de 1990. Hoje a América Latina tem muita experiência em governos progressistas. A esquerda italiana olha com muito interesse a América Latina. Por outro lado no passado quando eu visitava o continente observei que havia muito interesse no pensamento de esquerda italiano e particularmente de Antonio Gramsci. Quase se pode dizer que o interesse por ele era maior no Brasil que na Itália. Em uma das minhas viagens ao continente latino americano, na metade da década de 80, precisamente em Manágua, encontrei um intelectual brasileiro do PT, Marco Aurélio Garcia (atualmente assessor da Presidência para Assuntos Internacionais) na mesma ocasião de quando encontrei Lula, que não era ainda candidato a presidência no Brasil. Marco Aurélio era um estudioso de Gramsci.

No Brasil nós temos um sistema de comunicação que agiu intensamente durante duas décadas, gerenciado pela Rede Globo, com o objetivo de alienar politicamente. Os jovens no Brasil são as principais vítimas dessa estratégia.

Igual na Itália. No Brasil esse sistema nasceu com a Rede Globo e na Itália com Berlusconi. Só entretenimento. A televisão distanciou os jovens da política. É tudo voltado para talk shows, show de talentos. A diferença é a tradição política italiana, que é muito antiga, tem uma inteligência de esquerda que é muito radicada, que vem do partido comunista, da resistência. E depois a Itália tem um modelo de capitalismo muito avançado em relação ao modelo brasileiro. Mas existe agora um processo de padronização no mundo para a TV, por exemplo, com o programa do tipo reality shows como Big Brother.

Qual a posição das formações e partidos da esquerda italiana em relação aos imigrantes?

A posição é pelo acolhimento. Existem grandes movimento de base, comunidades e grupos de pessoas que se movimentam no sentido de acolher os imigrantes. Sem fazer diferença entre refugiados políticos ou não. É a posição comum em toda a esquerda. É também a posição da Igreja Católica que está em polêmica com o governo neste tema. Além disso o número de imigrantes que vem a Itália não é tão dramático como se faz parecer. Fazendo uma conta, se dividir por toda a comunidade italiana, daria três imigrantes pra cada cidade italiana. Eu me refiro aos imigrantes recém-chegados fugindo das guerras em seus países. Existe uma dramatização da parte da direita da Liga do Norte (um partido xenófobo e separatista, embora seja agora mais próximo de um partido de direita nacional) e da direita de Berlusconi, que tenta dramatizar o problema do imigrante para suscitar os piores instintos dos italianos. Não é verdade que a Italia não é racista.

A Italia é racista como todos os países europeus. Isso porque os partidos de direita desejam alimentar com o tema dos migrantes um voto de direita na Europa. A Liga, que era um partido acabado, retornou a um percentual que praticamente é maior o do partido de Berlusconi porque utilizaram o medo dos imigrantes. O percentual dos imigrantes que cometem homicídios ou outros crimes é inferior ao dos italianos, mas a intenção é que seja o contrário. Quando o crime é do estrangeiro se fala mais do que quando o crime é de autoria de italianos.

Essa estratégia permitiu à Frente Nacional, na França, com Le Pen, aumentar o desempenho eleitoral. E é a mesma coisa que está sucedendo na Holanda, Dinamarca e sobretudo em países do leste europeu: Polônia, Eslovênia, República Tcheca, todo o bloco de países do leste europeu, todos anti-imigrantes. Apesar de o número de imigrantes na Europa não ser muito grande.