Transnacionais, déficit e o desequilíbrio das contas externas

As remessas líquidas de lucros e dividendos ao exterior, realizadas pelas transnacionais instaladas no Brasil, voltaram a crescer no final do ano passado, perfazendo em novembro US$ 2,012 bilhões. Tudo indica que devem bater um novo recorde neste ano, em função da recuperação da economia e consequente crescimento dos lucros, além de um real apreciado, que naturalmente aumenta o valor dos lucros e das remessas em dólar.

Conforme reportagem do jornal “Valor” (18-1), “algumas previsões apontam um nível recorde de remessas em 2010, acima da máxima histórica de US$ 33,9 bilhões, atingida em 2008. O Banco Safra de Investimento projeta o envio de US$ 38 bilhões pelas empresas neste ano, enquanto o Itaú Unibanco aposta em US$ 34,2 bilhões”. Em consequencia, o déficit em conta corrente deve alcançar cerca de 45 bilhões de dólares, a julgar pela última previsão do Banco Central.

Mais-valia nacional

As remessas e outras modalidades da renda auferida pelo capital estrangeiro e transferida ao exterior (como os juros da dívida externa) sangraram a economia nacional durante o ano passado em cerca de 50 bilhões de dólares, ou mais de 3% do PIB. Ao analisar a origem deste excedente com o auxílio da teoria marxista não é difícil verificar que as remessas traduzem a apropriação (pelo capital estrangeiro) daquilo que Karl Marx classificou de mais-valia. Em outras palavras, trata-se do roubo de trabalho não pago realizado pela classe operária nativa ao longo do ano e redistribuído entre os capitalistas no processo de formação dos preços pelo mercado e por via do pagamento de juros. É um quinhão apreciável da poupança nacional, drenado para os centros imperialistas em detrimento dos investimentos internos e do desenvolvimento nacional.

A mais-valia, conforme notou Marx, é a substância do lucro, embora não seja sinônimo deste. Não se trata de um fenômeno óbvio. Na realidade, as relações de exploração subjacentes ao lucro são obscurecidas pela ideologia dominante e para tanto contribuem as divergências entre taxa de lucro e taxa de mais-valia, assim como as características da acumulação do capital na esfera financeira, onde dinheiro gera mais dinheiro (conforme indica a fórmula D-D´, sugerida por Marx) sem a intermediação do processo produtivo, gerando a falsa sensação de que o lucro não tem origem no trabalho e pode prescindir da exploração.

Poupança, investimento e PIB

O lucro é a principal fonte da poupança no capitalismo, poupança que por seu turno tem um papel determinante na formação da taxa de investimentos. Quando o lucro é apropriado pelas transnacionais e transferido ao exterior é automaticamente subtraído da poupança e dos investimentos internos. As remessas são uma das principais causas da baixa taxa de investimentos (ou Formação Bruta de Capital Fixo, na linguagem do IBGE) no Brasil.

Como o crescimento do PIB é dado, em primeira e última instância, pela taxa de investimentos não é muito difícil concluir que as remessas constituem um forte obstáculo ao desenvolvimento nacional. Em passado recente isto ficou demonstrado com o pagamento da dívida externa, viabilizado através da obtenção de gordos superávits comerciais, que acabou condenando o Brasil a pelo menos duas décadas perdidas (as de 1980 e 1990), quando a renda per capita permaneceu estagnada. O perfil do passivo externo brasileiro mudou desde meados dos anos 1990, de modo que hoje as remessas de lucros e dividendos pesam bem mais que os juros da dívida externa nas contas correntes.

O impacto das remessas sobre a taxa de investimentos e o balanço de pagamentos é amenizado pelo ingresso de capitais estrangeiros no país na forma de investimentos diretos ou indiretos. Como o fluxo de capitais externos cresceu consideravelmente ao longo dos últimos anos, o aumento das remessas, embora anulando o saldo positivo da balança comercial e determinando déficit da conta corrente, não resultaram em crise cambial, ao contrário do que ocorreu em 1998. O balanço de pagamentos (que contabiliza os resultados globais das relações econômicas do Brasil com o exterior, incluindo conta corrente e conta de capital) fechou com superávit nos últimos anos, possibilitando a acumulação de mais de 200 bilhões de dólares em reservas. É preciso ponderar que nem tudo que entra como investimentos (inclusive os chamados investimentos diretos) contribui para a expansão do parque produtivo, já que boa parte do capital que migra para a economia nacional é destinado a especulações com títulos de renda fixa e ações e aquisição de empresas já instaladas.

Controvérsia

Imaginando que o fluxo positivo de investimentos estrangeiros vai se eternizar (em função da copa em 2014, olimpíadas e pré-sal), muitos economistas de vocação neoliberal argumentam que o déficit em conta corrente não deve ser encarado como um problema. “A ideia de que isto é ruim é do século 17”, sustentou o economista Darwin Dib, do Itaú Unibanco em entrevista ao jornal “Folha de São Paulo” (18). Em sua opinião, “o país completará a escassa taxa de poupança doméstica com recursos externos”.

Todavia, a experiência histórica indica que os fluxos de capitais são voláteis, incertos e sujeitos a reversões bruscas. Lembremos que a crise cambial de 1998, que conduziu o país ao sinistro divã do FMI, esteve estreitamente associada ao déficit em conta corrente acumulado displicentemente pelo governo FHC, que ignorou os sinais de alerta ressaltados por muitos economistas.

Durante o período mais crítico das turbulências econômicas irradiadas pelos EUA, no segundo semestre de 2008, notou-se o esboço de uma fuga de capitais no Brasil, que provocou uma forte depreciação do real, a interrupção do crédito e dos investimentos externos. É verdade que, desta vez, o quadro de escassez de capitais não durou muito tempo e foi logo revertido. Isto não significa que a economia está imune a novos problemas do tipo no futuro.

Além disto, é preciso considerar que o ingresso de novos investimentos não sai de graça. Tem um preço salgado, que é precisamente o crescimento do passivo externo (fonte da nossa vulnerabilidade) e o aumento das remessas futuras de lucros (em suas diversas modalidades, incluindo juros) em remuneração ao capital aqui investido. Quanto maior o passivo, maior a sangria.

Taxar as remessas

Outrora, quando a origem dos lucros das transnacionais e seus reflexos sobre a taxa de investimentos pareciam mais claros, as remessas motivaram sérias polêmicas. A lei que restringia as remessas de lucros, proposta pelo governo Goulart, é apontada como uma das causas do golpe militar desfechado pelos generais no dia 1º de abril de 1964, com ostensivo apoio das transnacionais e do imperialismo norte-americano.

Atualmente, as empresas estrangeiras não precisam pagar imposto de renda sobre as remessas. Tal privilégio não existiu nem mesmo durante o regime militar. Foi mais uma herança perversa do neoliberalismo tupiniquim, que o governo Lula conservou. Tramitam no Congresso Nacional propostas que visam acabar com esta regalia e impor um tributo de pelo menos 15% sobre o valor do excedente que as empresas estrangeiras transferem para suas matrizes. A CTB e outras entidades do movimento sindical já firmaram posição a favor do imposto. É hora de pressionar o Parlamento tomar uma atitude neste sentido, em defesa dos interesses nacionais e do equilíbrio das contas externas.

A restrição das remessas torna-se mais justificável e necessária em 2010 em função do comportamento da balança comercial, que registrou déficit de 592 bilhões de dólares na segunda semana de janeiro, o que elevou a US 967 milhões o saldo negativo acumulado no mês. É de se esperar uma deterioração ainda maior do déficit em conta corrente e o próprio Banco Central já sinalizou neste sentido ao rever para cima sua previsão de déficit em conta corrente para o ano (de 41 para 45 bilhões de dólares).

Os prejuízos decorrentes da crise mundial do capitalismo, contabilizados nas matrizes, explicam em parte o aumento das remessas, realizadas no caso com o propósito de cobrir o passivo das empresas. Em 2009, o setor automobilístico e o financeiro, mais afetados pela recessão nas potências capitalistas (EUA, Japão e Europa) foram os que mais enviaram dinheiro ao exterior. Mas, não foi o Brasil, nem muito menos a classe trabalhadora brasileira, quem provocou a crise. Embora contrarie os interesses das transnacionais, restringir as remessas é uma questão de bom senso.

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