"As Bem-Amadas"

Filmes-painéis, aqueles que passeiam pelo tempo, lugares e situações, costumam tragar o espectador para múltiplas visões. Não é diferente neste “As Bem-Amadas”, em que o francês Christophe Honoré (“Em Paris”, 2006) passeia por quase cinquenta anos de história para situar as mudanças nas relações de gênero. 

Drama, comédia, farsa e musical perpassam as variações narrativas e, sobretudo, não fogem à contextualização político-social. O intercambiar personagem/momento histórico termina por destacar inter-influências e mostrar como elas se descolam umas das outras.

A complexidade do filme está justamente nisto. Madeleine (Ludivine Sagnier) leva, quando jovem, a dupla vida de balconista de sapatos chiques e trabalho extra nas ruas. Maliciosa e sedutora em suas relações com o cliente tcheco, o médico Jaromil (Omar Bem Sellen), ela demarcará as mudanças comportamentais e históricas dos anos 60. Da mini-saia à Primavera de Praga, em 1968, ela irá combinar, ainda, a liberdade feminina e a busca de segurança.

Assim, o amor entre eles atravessará décadas até a terceira idade, em 2007. Mas é o comportamento avançado dela que na maturidade, interpretada por Catherine Deneuve, confirmará sua capacidade de manter-se fiel a Jaromil e a Françóis Gouriot (Michel Delpech). Sua contraposição é a filha Vera (Chiara Mastroianni), herdeira da liberação feminina dos anos 60. Honoré usa o comportamento desta para discutir o que restou daquela década.

Embora criada num ambiente liberado, ela não transita por suas paixões com o mesmo equilíbrio e envolvimento da mãe. Seu conceito de liberdade é bem outro.
Seu trabalho, como professora, lhe dá independência para frequentar a noite sem controle ou censura. O mesmo ocorre com sua relação com a mãe. São amigas e confidentes. Na vida amorosa ambas são diferentes. Ela não herdou a engenhosidade da mãe. Vive às turras com o namorado Clement (Louis Garrel). Até que, numa viagem a Londres, encontra o gay estadunidense Henderson (Paul Schnieder), baterista de uma banda de rock. Isto, em principio, não a impede de apaixonar-se por ele. Depois, a relação platônica entre eles, ainda que amigável, gera um conflito de difícil solução.

Diferentes vivências do amor e da vida

Honoré situa suas contradições em 2007, como se a divisão de épocas condicionasse o comportamento dela. Enquanto a mãe divide-se entre François e o septuagenário Jaromil (o cineasta tcheco Milos Forman, de “Estranho no Ninho” e “Amadeus”), ela tenta e não consegue ligar-se a Clement e a Henderson a um só tempo. A sequência de sexo a três dela, Henderson e o amante dele, em Montreal, agudiza seu conflito. Ela almeja a relação plena, não a platônica que ele, renitente, lhe concede. Mais que esta contradição, o importante é ver os limites do que expõe Honoré. E eles não são poucos.
Transita da visibilidade dos casais do mesmo sexo à possibilidade da atração por um deles. No caso dela o gay Henderson, formando uma terceira variante não de gênero, mas de parceiro sexual. O que banaliza a insistência religiosa-conservadora do casal tradicional, pouco importando a tendência afetivo-sexual do parceiro. Honoré passa essas idéias em belas sequências cheias de humor e farsa, caso da relação Madeleine/Jaromil/François, e de drama na dilacerada paixão de Vera por Henderson.

“As Bem-Amadas” não é uma obra romântica, mas sobre as relações de gêneros e as diferentes formas de amar nos tempos atuais. A fidelidade não é a prova real de amor, ela é superada pela duplicidade – a tendência de se viver em dois pólos: a da paixão e da segurança, caso de Madeleine, a da paixão e da impossibilidade da relação amorosa, exemplo de Vera. A ética e a moral burguesa-cristã acabaram soterradas por sua própria hipocrisia. O que se vê hoje já existia nas veladas relações hetero ou homossexuais. Os movimentos de liberação feminina e de opção sexual apenas as escancararam.

Daí a importância deste romanesco filme de Honoré. O romanesco aqui é da narrativa que usa o tempo, tipifica os ambientes e os personagens, situa-os historicamente, ao invés de fechá-los em ambientes que não os relacionam com o mundo. E utiliza variados recursos para dar conta de seu estado psicológico: as letras musicais, a dança, as variações de humor e as mudanças de época: a invasão de Praga pelas tropas soviéticas em 1968, a epidemia de AIDS na década de 80 e a Queda das Torres Gêmeas, em 11/09/2001.

É também um filme de atrizes. De Sagnier e de Deneuve/Mastroianni, mãe e filha. A maneira como Honoré as filma é de uma delicadeza que lembra o Truffaut (1932/1984) de “Uma Jovem Tão Bela Como Eu” e ”Jules & Jim” e o Demy (1931/1990) de “Lola”. Mesmo quando a morte chega é o acaso que a dita ou é tão submersa que a dor se torna uma reverência. É seu olhar de diretor teatral e de romancista que dota suas obras de tal equilíbrio. Enfim, uma obra para se ver (e rever) em todos os detalhes. Não é todo dia que isto acontece.

“As Bem-Amadas”. (“Les Bien-Aimés”). Drama. França/Reino Unido/República Tcheca. 2011. 139 minutos. Fotografia: Rémy-Cheurin. Música: Alex Beaupain. Roteiro/Direção: Christophe Honoré. Elenco: Catherine Deneuve, Chiara Mastroianni, Ludivine Sagnier. Louis Garrel, Paul Schneider

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor