A Intensificação do trabalho docente como obstáculo à qualidade

Pensar uma revolução através da educação é tolice ou inocência*. A esperança de outro mundo possível não é uma ilusão, mas é preciso ater-se ao fato de que a escola é pouco permeável às mudanças externas, isto é, refratária às propostas que não dialoguem com os anseios de sua comunidade ou partam dela.

É só pensar nas inúmeras tentativas de mudanças pontuais e reformas educacionais que não lograram êxito porque na ponta de suas execuções estão os professores, que não aderem automaticamente às mudanças no seu trabalho cotidiano simplesmente porque um ato foi publicado no Diário Oficial; pelo contrário, eles podem fazer mediações e resistências das mais diversas maneiras, consciente ou inconscientemente, individual ou coletivamente.

Entretanto, uma mudança profunda vem se operando no trabalho dos professores nas últimas décadas. Assim como há 100 anos para o Estado fazer uma estrada bastava fazer um projeto e contratar uma construtora, hoje é preciso realizar estudos de impacto ambiental e social, fazer longos processos de desapropriação, ouvir os atores sociais envolvidos e impactados pela obra e pelos possíveis transtornos, etc. O professor deixava de ser o senhor absoluto da escola, com a criação dos grupos escolares com turmas seriadas, sua formação acontecia apenas nos cursos normais e ali encerrava-se, suas atribuições que resumiam-se a dar aulas, supervisionar a disciplina e classificar o aprendizado com notas. No transcorrer deste período, a educação ganhou status de Direito, e a criança passou a ser sujeito de direitos, o trabalho docente foi ganhando mais complexidade e, paradoxalmente, perdendo prestígio e precarizando-se cada vez mais; especialmente com o advento do neoliberalismo.

Mas qual a relação disso com a educação e o trabalho dos professores?

Ora, a partir do estabelecimento das bases econômicas e políticas da globalização econômica um discurso passou a ser hegemônico: o discurso da eficiência. Aos sistemas escolares não bastava ensinar, era preciso ensinar de forma eficiente. No Brasil, durante os governos militares, a educação ganhava obrigatoriedade para o ensino fundamental e a carreira docente sofria um processo de precarização sem precedentes que só passaria em “brancas nuvens” por se tratar de um regime de exceção.

No final da década de 1970, com o processo de redemocratização os professores brasileiros, assim como outras categorias, passaram a travar várias lutas, entre elas a luta salarial (o professor é o profissional com formação superior com os piores salários) e a luta por melhores condições de trabalho que se materializa, principalmente, com a luta pelo tempo de trabalho fora da sala de aula. Em mais de trinta anos houve poucos avanços nesse sentido, principalmente por conta das políticas de ajuste fiscal que sequestram quase metade do orçamento da União para o pagamento de títulos e juros da dívida pública. Mesmo no nível dos estados, há poucos que pagam o Piso Salarial Nacional e cumprem a jornada docente; a maioria não cumpre os dois e alguns não cumprem nenhum, caso de São Paulo.

Grande parte dos professores trabalha em mais de uma rede de ensino, descolam-se entre mais de duas escolas e mesmo no caso da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo (que cumpre o piso e a jornada), em que há muitos professores que trabalham em apenas uma escola, é frequente a queixa de que trabalham além do tempo remunerado.

Ao professor do século 21 não basta cumprir as atribuições de seus antecessores de 100 anos atrás. O professor deve trabalhar com currículos em constante mudança (como se mudar o currículo fosse a panaceia para a crise na educação), deve promover sua formação continuada (mesmo que não tenha apoio de seus supervisores e do sistema em que leciona), deve responder às pressões de seus sistemas por produtividade e eficiência (mensurados, quase sempre, por avaliações externas às quais sequer compreende/domina e às vezes não tem acesso aos resultados de seus alunos, mas é responsabilizado quase que exclusivamente pelo seu fracasso) e em relação às expectativas da sociedade, deve trabalhar tendo a criança como centro, com as famílias e colegas, etc.

Isso pode parecer uma complexibilização natural, mas é produto de um projeto de governança que tem como objetivo a homogeneização e padronização das escolas, professores e sistemas.

E, a grande armadilha é que esse projeto de governança ganha a adesão dos professores com um sistema de auto cobrança deles mesmos por uma resposta de maior profissionalização. Isto é, os sistemas 1- lançam os professores em busca da formação como uma empreitada individual, fazem uma propaganda massiva sobre os benefícios do 2- trabalho coletivo e da busca de 3- inovações pedagógicas e soterram os profissionais em exigências burocráticas que inviabilizam a consecução desses três objetivos.

Podemos olhar para o copo e afirmar que está meio cheio (profissionalização) ou meio vazio (intensificação). Minha leitura é ambos os fenômenos são as duas faces de uma mesma moeda.

Esses processos de governança são um projeto de implementação de uma lógica corporativa em uma instituição que não tem como objetivo o lucro e aí está a grande contradição, porque ao sofrer as resistências — ainda que inconscientes, por serem percebidas subjetivamente — ele não atinge seus objetivos de eficiência e mesmo tendo adesão — professores que aderem à tese do profissionalismo — não atingiria a educação, mesmo quando orientada para a lógica do Capital Humano, não afere lucros mensuráveis.

Aos professores, cabe tornarem-se sujeitos e trazerem para a objetividade esses elementos subjetivos, de forma a poderem perceber como funciona e quais os limites da governança. A partir dessa reflexão, recuperarem o poder sobre a produção de seus trabalhos e deixarem de reproduzir um trabalho alienado, distante de suas potencialidades criativas e inventivas. Mas essa luta não deve restringir-se aos sindicatos, sob pena de ser uma bandeira corporativa e, por isso, continuarem a travar essa luta solitariamente. É preciso convencer a sociedade de que quando o professor ganha maior poder discricionário sobre a sua prática pedagógica, produz conhecimento e essa produção autônoma, promove uma educação com qualidade. E, em se tratando de educação, alcançar a qualidade é elevar a eficiência ao patamar de êxito.

*. Em um próximo texto me dedicarei ao sofisma do binômio educação-revolução.

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