Anotações sobre marxismo e classes sociais (IV): consciência de classe

O proletariado não surge, como classe, pronto e acabado. Ele resulta de um longo processo histórico. Foram as condições econômicas que transformaram a massa da população de um país em trabalhadores, diz Marx em Miséria da Filosofia (1847). “A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns” e a transformou “numa classe face ao capital”. Uma classe em si, “mas não para si mesma”. 

Na luta contra o capital essa massa pode se reunir, “constituindo-se numa classe para si mesma”, uma classe para si. “Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe. Mas uma luta de classe a classe é uma luta política”, enfatizou (Marx: 1991).

É importante ressaltar que para Marx e Engels não é a mera quantidade que distingue uma classe, mas o salto de qualidade representado pela aquisição e desenvolvimento da consciência de classe e a organização e ação políticas que decorrem dela.

Esta é a ideia subjacente à famosa passagem de O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte em que Marx, referindo-se aos camponeses franceses, acentua a importância da organização nacional da classe em torno de um programa politico unificado. Os camponeses “formam uma massa imensa cujos indivíduos vivem em idêntica situação mas sem que existam muitas relações entre eles”. Formam “a grande massa da nação francesa pela simples soma de suas unidades sob o mesmo nome, como, por exemplo, as batatas de um saco formam um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias vivem sob condições econômicas de existência que se distinguem de outras classes por seu modo de viver, seus interesses e sua cultura, e se opõe a elas de forma hostil, eles formam uma classe. Contudo, na medida em que só exista entre os camponeses parcelários uma articulação puramente local e a identidade de seus interesses não engendra entre eles nenhuma comunidade, nenhuma organização nacional e nenhuma organização política, não formam uma classe” (Marx, 1975).

Não bastam os interesses comuns e a identidade de classe, afirma Marx. É preciso ir além e cristalizar esta consciência de classe embrionária numa ação política concreta, expressa numa organização política e num programa de transformações que unifiquem a classe e sua luta.

Marx reafirmou essa ideia no Manifesto inaugural da Associação Internacional de Trabalhadores (21/10/1864): a “classe operária possui um elemento de triunfo: o número. Mas o número não pesa na balança se não está unido pela associação e dirigido pelo saber” escreveu (Marx, 1982).

Nos Estatutos Gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores (24/10/1871) voltou a insistir na importância da organização política. “Em sua luta contra o poder unido das classes possuidoras, o proletariado só pode atuar como classe constituindo-se a si próprio em partido político distinto e oposto a todos os antigos partidos políticos criados pelas classes possuidoras” (Marx, 1982).

Outro exemplo consta da Resolução da Primeira Internacional sobre a Atividade Política da Classe Trabalhadora (1871) onde Marx diz que contra "a força coletiva das classes proprietárias, a classe trabalhadora não pode agir, como classe, a não ser constituindo-se como partido político" (citado por Miliband, 1979).

Marx fazia uma nítida distinção entre as lutas econômica e política, iniciando uma longa tradição analítica aprofundada por Lênin e prosseguida pelo pensamento marxista posterior.

Em carta a Friedrich Bolte (23/11/1871) Marx escreveu que “todo movimento em que a classe operária atua como classe contra as classes dominantes e trata de forçá-las ‘pressionando desde fora’, é um movimento político. Por exemplo, a tentativa de obrigar através de greves os capitalistas isolados a reduzir a jornada de trabalho em determinada fábrica ou ramo industrial, é um movimento puramente econômico. Pelo contrário, o movimento para obrigar a que se decrete uma lei da jornada de oito horas, etc., é um movimento político. Assim, pois, dos movimentos econômicos isolados dos operários nasce em todas as partes um movimento político, isto é, um movimento da classe cujo objetivo é que se dê satisfação a seus interesses de forma geral, isto é, de forma que seja compulsória para toda a sociedade” (Marx, 1975).

Outro aspecto muitas vezes negligenciado em nome de uma visão “materialista” de alcance limitado, que Marx criticou desde as Teses sobre Feuerbach, em 1845, como “materialismo antigo”, típico do século XVIII, e não dialético (Ruy, 2005) é o papel da ação prática humana no processo da luta de classes.

São lugares comuns no marxismo a referência à luta de classes como motor da história e a afirmação de que a mudança histórica deriva da contradição entre forças produtivas e relações de produção.

São afirmações solidamente ancoradas no cânone marxiano, particularmente no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, ou no Prefácio à da Crítica da Economia política, de 1859.

Há uma tendência na tradição marxista a encarar estas duas afirmações isoladamente. A ênfase na luta política traz quase sempre a referência à luta de classes. Quando o foco são mudanças estruturais mais gerais, geralmente de fundo econômico (“em última instância”, como queria Engels), a preferência recai sobre a contradição entre forças produtivas e relações de produção.

Ora, a contradição entre relações de produção e forças produtivas só pode ser compreendida no contexto da luta de classes, que é onde ela recebe a concreticidade da práxis, da ação humana concreta. São os seres humanos que, na luta pela apropriação da riqueza produzida pelo trabalho, encarnam e movem aquela contradição.

O conflito entre forças produtivas e relações de produção não ocorre fantasmagoricamente, à margem da experiência humana concreta e real. Nem a luta de classes ocorre opondo princípios abstratos ou uma vontade que moveria a disputa pelo mando. No modo de produção capitalista o conflito entre os produtores diretos e as classes dominantes pela divisão dos produtos do trabalho leva à busca de uma produtividade maior e, em consequência, ao uso de meios de trabalho mais eficientes.

O resultado é o desenvolvimento das forças produtivas. Uma produção mais elevada e a existência de meios de trabalho mais eficientes fomentam por sua vez a luta em torno da organização do trabalho, da extensão do tempo de trabalho (pela redução da jornada, por exemplo), da apropriação e distribuição de seu produto. Esta luta (de classes) força os limites impostos pela maneira como a produção está organizada e a sociedade estruturada.

Em seu desenvolvimento esta luta faz caducarem as relações de produção vigentes, que se tornam um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas. Abre-se então “uma época de revolução social”, diz Marx no Prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política.

É preciso prestar atenção ao que Marx escreveu mais adiante naquele Prefácio. Ele enfatizou a necessidade de que sejam combinadas, na análise, da alteração ocorrida, os instrumentos e meios de produção (tecnológica, se diria hoje) com as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito, levando-o às últimas consequências”. É preciso explicar a consciência pelas contradições da vida social, “pelo conflito que existe entre as forças produtivas e as relações de produção”, diz (Marx, 1973).

Isto é, Marx inter-relaciona o conflito material (objetivo) e sua expressão na consciência (subjetiva). É importante prestar atenção neste aspecto da teoria para evitar a armadilha que, a pretexto do “materialismo”, põe ênfase nas relações materiais de produção e tende, sob este pretexto, a eliminar o papel do sujeito e da ação consciente do homem. Permite escapar também da armadilha inversa que, focando apenas as relações políticas e culturais, desaba no idealismo e no subjetivismo.

Referências

Marx, Karl, e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Moscou, Edições Progresso, 1987.

Marx, Karl. “El dieciocho Brumário de Luis Bonaparte”. In Marx, Karl, e Engels, Friedrich. Obras Escogidas, t. 1. Madrid, Editorial Ayuso, 1975.

Marx, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Lisboa, Editorial Estampa, 1973.

Marx, Karl. Miséria da Filosofia. Lisboa, Editorial Avante!, 1991.

Marx, Karl. Obras Escolhidas em três tomos, t. II. Editorial Avante!/Edições Progresso, Lisboa/Moscou, 1982.

Miliband, Ralph. Marxismo e política. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.

Ruy, José Carlos. “De Hegel a Marx”. In Princípios, nº 82, 2005.

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