Capitalismo e socialismo na América Latina

Para o presidente venezuelano, Hugo Chávez, o mundo vai acabar se o capitalismo continuar existindo. Durante solenidade com membros da Via Campesina e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Teatro Guaíra, em Curitiba (PR), Chávez destac

Num livro provocador e bem documentado, Arianna Huffington, comentarista e ativista política norte-americana, mostra que houve nos Estados Unidos nos últimos anos um afluxo de “Porcos no Cocho” (expressão que dá título ao livro), que, travestidos de executivos, beneficiaram-se de salários milionários e inúmeras regalias, fraudaram as contas de empresas e manipularam ofertas de ações, entre outros abusos. O mais ultrajante, porém, é que muitos dos que se beneficiaram desse fluxo de dinheiro foram capazes de pressionar com sucesso o Congresso e a Casa Branca para que abrissem caminho aos excessos cometidos.


 


Em outra metáfora animalesca, uma anedota que há alguns anos circula pela Internet faz uma parábola com vacas para explicar o novo capitalismo estilo Enron. Para quem não viu, reproduzo:



“Capitalismo estilo Enron: você tem duas vacas. Vende três para a sua companhia de capital aberto usando garantias de crédito emitidas por seu cunhado. Depois faz uma troca de dívidas por ações por meio de uma oferta geral associada, de forma que você consegue todas as quatro vacas de volta, com isenção fiscal para cinco vacas. Os direitos do leite das seis vacas são transferidos para uma companhia das Ilhas Cayman, da qual o sócio majoritário é secretamente o dono. Ele vende os direitos das sete vacas novamente para a sua companhia. O relatório anual diz que a companhia possui oito vacas, com uma opção para mais uma. Você vende uma vaca para comprar um novo presidente dos Estados Unidos e fica com nove vacas. Ninguém fornece balanço das operações. O público compra o seu esterco.”


Essas práticas têm muito a ver com a transformação do capitalismo na América Latina nos anos da “era neoliberal”. Nessa “era”, pelo menos dois ciclos políticos já se cumpriram. O primeiro foi o lançamento do novo projeto hegemônico, marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e liderado por Augusto Pinochet (Chile), Calos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Andrés Perez (Venezuela), Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Perseguidos pela lei — alguns ainda estão foragidos —, eles foram substituídos, num segundo ciclo também marcado pela condução anglo-saxã (desta vez com Bill Clinton e Tony Blair), por presidentes mais precavidos — chegaram a mudar a lei, com fez FHC, para criar proteções em caso de serem levados aos tribunais —, mas igualmente nefastos.


A virada à esquerda, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, despertou a ira dessa gente. O fato de a América Latina já ter cumprido penosamente dois ciclos da “era neoliberal” faz com que a direita se veja às voltas com enormes dificuldades eleitorais. Daí o retorno das ameaças golpistas, novamente travestidas de defesa da “liberdade”, fundadas no combate ao socialismo — para o ideário totalitário da direita antítese da “democracia”. No Brasil, esse discurso começa a aparecer na campanha do candidato tucano/pefelista, Geraldo Alckmin. É, evidentemente, uma orquestração para atingir o governo Lula no coração: a política externa que prioriza a integração sul-americana.


Os movimentos dos capitais especulativos


Ninguém, fora os suspeitos de sempre, diz que o governo Lula tem como meta “a construção do socialismo”. A relação do presidente e de seu partido, o PT, com o socialismo nunca foi claramente demarcada. Discursando na cerimônia de abertura do 22° Congresso da Internacional Socialista, no começo de 2004, ele disse: “Não desconhecemos as heranças do socialismo do Século 20. Sobretudo, não esquecemos seus sonhos, o sacrifício de tantos, as esperanças que foram capazes de despertar. Mas pertencemos, junto com outras organizações, sobretudo da América Latina, a uma outra geração de partidos.”


Falando como presidente de honra do PT, Lula disse que os petistas refletiram “criticamente” sobre muitos paradigmas teóricos que receberam e, sem cair no pragmatismo, procuraram criar um movimento que fosse capaz de enfrentar, “de forma criativa, não-dogmática”, os grandes desafios do nosso país. “O principal desses desafios é vencer as enormes desigualdades sociais que marcam o nosso país. Delas decorre o estigma da fome que nos marca. Na prática, nossa democracia excluiu, da cidadania efetiva, dezenas de milhões de homens e mulheres. Nossa soberania foi e é ameaçada”, disse ele. Mais adiante, Lula disse: “Em nome de uma integração necessária do Brasil no mundo, governantes tornaram nosso país extremamente vulnerável aos movimentos dos capitais especulativos e às pressões das forças políticas que os sustentam.” 


O Brasil deve se desviar do capitalismo estilo Enron



O presidente falou ainda de temas freqüentes nos debates socialistas. “Nosso processo foi um difícil aprendizado, que teve vários cenários. As lutas, nas fábricas e nos campos, os embates parlamentares, as experiências administrativas de governar as cidades e os Estados, as discussões intelectuais. A mobilização permanente pelos direitos humanos, especialmente no combate ao racismo e à discriminação de gênero, e a defesa do meio ambiente. Nesse processo, foi-se reforçando nossa compreensão de que vivíamos em um mundo injusto, que era necessário mudar”, afirmou. Lula também falou de política externa e ressaltou a aproximação dos vizinhos da América do Sul. “Queremos construir uma infra-estrutura comum, que nos permita desenvolver-nos e melhor inseri-los no mundo. Nós buscamos mais do que uma integração econômica e comercial: queremos construir instituições políticas comuns, buscando uma aproximação social e cultural”, disse ele.


As teses rasas dos neoliberais dizem que o desenrolar dos acontecimentos no mundo acabou revelando que os revolucionários que deram certo não foram Marx, Lênin e Mao Tse Tung, mas Milton Friedman, Ronald Reagan e Margaret Thatcher, mesmo depois que a crise asiática mostrou o fracasso da fórmula “menos Estado e mais mercado”. Os êxitos das economias chinesa, indiana, venezuelana e argentina também são um forte argumento para o Brasil se desviar do capitalismo estilo Enron. E o exemplo venezuelano é o que mais desperta a ira dos neoliberais. Em sua recente visita ao Estado do Paraná, Chávez fez diversos ataques ao capitalismo e ao imperialismo, além de reforçar a necessidade da integração de toda a América Latina e a implantação da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), no lugar da Área Livre de Comércio das Américas (Alca).


Sem o socialismo, o mundo vai acabar


Chávez disse que a América Latina não pode ser colônia norte-americana. Segundo ele, todos os países precisam ser uma única pátria latino-americana. ''Precisamos de um tratado de comércio, e não esse de livre comércio, que oprime em vez de libertar'', disse. Ele também disse que o Mercosul precisa de reformulações, para que evolua de um acordo de cooperação comercial para um projeto de solidariedade e interesse social. Para o presidente venezuelano, o mundo vai acabar se o capitalismo continuar existindo. Durante solenidade com membros da Via Campesina e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Teatro Guaíra, Chávez destacou as virtudes do socialismo. ''O socialismo é o único meio para salvar o planeta. Socialismo ou morte!'', disse em seu discurso.


Chávez enfatizou que é necessário acabar com o imperialismo norte-americano, ''antes que ele acabe com os outros''. Reforçou que o momento atual é de confronto de idéias, e não de confronto bélico. Para isso, ele disse que a integração da América Latina é necessária e que ''estamos em um momento crucial de retomar as nossas bandeiras”. “A América Latina perdeu a sua essência e devemos começar a recuperar isso'', disse.  Para Chávez, as relações entre Brasil e Venezuela chegaram a um patamar nunca alcançado. Uma das evidências do aprofundamento do relacionamento entre os dois países é a quantidade de acordos firmados com o Paraná, segundo o presidente venezuelano. ''Paraná e Venezuela estão assumindo a responsabilidade de aprofundar e ampliar a relação dos dois países, em um grande projeto de integração'', afirmou.



Companheiros vem do latim e significa ''com pão''



O governador paranaense Roberto Requião (PMDB) afirmou que a política externa de Hugo Chávez reforça política externa do presidente Lula. Requião lembrou os profundos vínculos que unem os dois países e destacou: ''O Paraná está fazendo, na prática, a política externa do presidente Lula''. Requião elogiou a mudança na política externa dos dois países afirmando que é uma tendência moderna e se contrapõe à bipolarização do mundo. O governador defendeu o relacionamento dos países sem o filtro dos interesses das grandes corporações e dos impérios.


O governador salientou que tanto Chávez como Lula se opõem à imposição da Alca e outros tratados entre países que têm por interesse exclusivo o lucro. ''É preciso também levar em conta o território, a história, o espaço físico consolidado ao longo dos anos e o processo cultural nessas parcerias e acordos'', afirmou. Ao se referir ao presidente da Venezuela como companheiro, o governador explicou que o termo vem do latim ''compane'', que significa ''com pão''. Segundo Requião, ''somos companheiros porque estamos sentados à mesma mesa, dividindo o pão doce e farto nos bons momentos e o pão parco e amargo nos momentos difíceis''. O governador apontou a ''forma moderna'' como o Paraná está promovendo esta integração com a Venezuela. ''Estamos realizando o ideal bolivariano'', disse.


As ligações de Bush com o capitalismo estilo Enron

O que é preciso entender, antes de tudo, é que esse tipo de capitalismo vive em outra galáxia, distante daquela habitada pelos mortais comuns. Nela não há mocinhos e seus integrantes fazem parte de uma simbiose complexa e nada saudável com o poder político. Por isso, os escândalos pipocam e a Justiça não é chamada a intervir – tampouco a polícia. Isso quebraria essa intrincada teia de relações, jogaria luz em trevas há muito intocadas e romperia com o rito que os integrantes dessa galáxia professam. O presidente George W. Bush é um legítimo representante dessa galáxia. Seus negócios obscuros no Texas envolvem relações com a mega-fraude da Eron, cuja sede fica em Huston. Kenneth Lay, o ex-executivo-chefe da corporação, era carinhosamente chamado pelo presidente de ''Kenny Boy'' e ajudou a pagar as despesas da festa da posse presidencial.



Boa parte do alto escalão do atual governo norte-americano, além do presidente do Partido Republicano, é ligada a Enron. No Brasil, atraída pelas privatizações de FHC, a Enron controlou a distribuidora de energia de São Paulo Elektro, deteve 25% das ações da Ceg e da CegRio, 41% em sete companhias de gás e 100% da usina de gás natural de Cuiabá (MT). Na Inglaterra, a corporação também tem raízes: apoderou-se das centrais elétricas e da rede de água do centro de Londres no governo de Margareth Thatcher. E ainda mantém fortes laços com o governo de Tony Blair – contribuiu com o financiamento eleitoral e deixou um rastro de suspeitas com manobras ilegais para despejar dinheiro em sua campanha de 1997.


Receitas orientadas à integração regional


Fidel Castro, na ''Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento'' promovida pela ONU em Monterrey, México, em março de 2002, disse que o prestígio das instituições financeiras internacionais está abaixo de zero. ''A atual ordem econômica mundial se constitui num sistema de saque e exploração como jamais existiu na história'', afirmou. ''Por cada dólar empregado no comércio mundial, mais de cem vão para operações especulativas que nada tem a ver com a economia real. Essa ordem tem conduzido ao subdesenvolvimento de 75% da população mundial. Chegamos ao extremo de as três pessoas mais ricas do mundo possuírem ativos equivalentes ao PIB combinado dos 48 países mais pobres'', disse ele.



O tempo em que vivemos ficará marcado na história pelas profundas regressões civilizatórias, de agravamento brutal da exploração da maioria por uma pequena minoria. O raivoso Bush, quando ataca os países e as organizações que não se submetem à dominação imperialista, tem o hábito de dizer que o mundo mudou. De fato, mudou — principalmente na América latina. Apesar dos problemas com os quais a região hoje se debate, os países latino-americanos avançaram muito à base de receitas mais orientadas à integração regional do que aquela que vinha sendo a fórmula padronizada no Terceiro Mundo, que reserva papel importante para a especulação financeira às custas dos direitos dos povos. Daí a previsão de que a campanha eleitoral no Brasil será pautada por tensões e ataques pesados da direita.



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