''Cobertura adversária'' no Congresso Nacional

Não há dúvida de que existem problemas graves com alguns de nossos representantes eleitos para o Congresso Nacional. Número significativo de deputados e senadores tem estado freqüentemente envolvido em atividades ilícitas e/ou eticamente condenáveis. A mí

Uma das questões não resolvidas que envolvem eticamente (ou legalmente?) os parlamentares tem a ver com a auto-outorga de concessões do serviço público de radiodifusão a si mesmos, prática que eterniza o chamado ''coronelismo eletrônico''. Este tema tem sido objeto de pesquisa e denúncia de nossa parte há vários anos [ver ''Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)'' e ''Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento'']


  


 


É, no entanto, forçoso reconhecer que a cobertura política que é feita diariamente das atividades no Congresso Nacional se caracteriza por salientar quase que exclusivamente aspectos negativos do Poder Legislativo e de seus integrantes. E, algumas vezes, de forma preconceituosa ou revelando profundo desconhecimento da importância e da riqueza das culturas regionais brasileiras.




São João


  


Qualquer brasileiro com razoável nível de informação sabe que as festas juninas de São João – dia 24 de junho – estão para a cultura e a tradição do Nordeste como o Natal está para o resto do país ou, por exemplo, o ''Thanksgiving'' está para os Estados Unidos. Alguns estados nordestinos literalmente param neste período. Este ano, como o São João caiu numa terça feira (24), desde a sexta feira anterior (dia 20) havia um clima de alegria no ar e, nas cidades coloridas e ornamentadas, só se falava em ir para Caruaru (PE) ou Campina Grande (PB) onde acontecem as principais festas populares. As estradas estavam lotadas e vivia-se um ''clima'' de Copa do Mundo.


  


Neste tipo de circunstância, qual seria o comportamento a se esperar de um deputado ou senador nordestino? Que ele permanecesse em Brasília ou que ele estivesse junto à sua base eleitoral participando da principal festa popular da região? Em circunstância semelhante, o que esperar de qualquer parlamentar em qualquer outro país de democracia representativa?


  



A cobertura política que, em boa parte, se faz do Congresso Nacional reduz o trabalho de representação popular de senadores e deputados à sua presença nas sessões de votação em plenário. Mesmo as importantes atividades nas comissões – à exceção das CPIs – são, geralmente, desconsideradas como trabalho. As viagens de parlamentares aos seus estados são normalmente tratadas como ''falta'' indevida ao trabalho.


  


Discurso adversário


  


Tudo isso vem a propósito de matéria opinativa veiculada no Jornal da Band na terça-feira (24/6), dia de São João. Os parlamentares (sobretudo os nordestinos) que viajaram para os seus estados foram acusados de receber o salário sem trabalhar; de participarem das festividades de São João por motivos ''eleitoreiros'' e de impedirem as votações de temas relevantes no Congresso. E mais: foi feita uma projeção de ''esvaziamento'' do Congresso e, portanto, de ''afastamento do trabalho'', com as desculpas das campanhas eleitorais e das festas juninas.


  


As imagens que fizeram ''fundo'' para a matéria foram os corredores do Congresso decorados de bandeirinhas, os plenários da Câmara e do Senado vazios e as danças das festas juninas.


  


Transcrevo abaixo a íntegra da matéria opinativa:


  


''Apresentadora: O Congresso se enfeitou para a noite de São João, mas deputados e senadores participam de festas juninas longe de Brasília. E mesmo sem trabalhar, os parlamentares vão receber o salário normalmente.


  


Repórter: Congresso todo enfeitado no melhor estilo junino, mas nem sinal dos pares para o arrasta-pé. Deputados e senadores, principalmente os nordestinos, preferiram festejar o São João do jeito eleitoreiro, que dá mais votos e prestígio político, junto às bases.


  


Na Câmara, o presidente da Casa bem que tentou. Mandou telegramas convocando os deputados, em vão, quase ninguém veio.


  


Presidente da Câmara/Arlindo Chinaglia: Eu respeito às tradições, mas evidentemente que aqui nós vamos tratar de assuntos, todos eles relevantes para o país.


  


Repórter: E nessa quem dançou foi falta de votação. Com o recesso branco projetos importantes ficam mais tempo parados. Aqui no Senado, por exemplo, o projeto que reduz a maioridade penal está pronto para ser votado há mais de um ano.


  


E agora, até o fim das eleições municipais, o Congresso deve permanecer vazio. As festas juninas, o recesso parlamentar e as campanhas eleitorais são as desculpas para o afastamento do trabalho. O presidente do Senado, nordestino, nem veio a Brasília, já está em Natal para os festejos e liberou todos os senadores para fazer o mesmo.


  


Senador Heráclito Fortes (DEM-PI): Nós não precisamos sair de Brasília para procurar quadrilha, pular fogueira e nem pisar em brasas. Aqui tem tudo.''


  


Volto a recorrer aqui a texto clássico da professora Maria do Carmo Campello de Souza, já falecida, publicado há 20 anos (''A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles'', in Democratizando o Brasil, organizado por Alfred Stepan, Paz e Terra, 1988). O texto está mais atual do que nunca e vale a longa citação:


  


''A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo lingüístico sistemático sobre o `discurso adversário´ em relação à democracia expresso pelos meios de comunicação. (…) os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (culpar o sistema ou fazer uma avaliação negativa do sistema democrático ou da democracia). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (…)


  


O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…).'' (pp.588-9, passim).


  


Já não seria hora de a grande mídia rever seus critérios de cobertura política opinativa, sobretudo em relação ao Congresso Nacional, e tentar evitar que tenhamos ''uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos''?


 


Artigo publicado no Observatório da Imprensa

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