Comer içá: o inusitado é uma iguaria

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Tudo fora de mim está morno. As paredes, o chão, o ar. Sinto no pelo dos braços. Respira-se o morno, e é morno o azul do céu e todos os cheiros. Essa mornidade deliciosa também está por dentro. Chega a ser felicidade estar morno assim. É calmo, é quieto. Há silêncio e sonolência. Há um cheiro de mel no ar. É primavera. Só ali, naquelas cidades do Vale do Paraíba [em Taubaté nos idos de 1980] consegui sentir tal mornitude silenciosa. Será o Rio Paraíba, ou será a brisa marítima que atravessa, percorre e inunda as entranhas de tudo?

Diante dessa quietude que vai até as fronteiras das serras do Mar e da Mantiqueira, avisto o pasto verde a se estender para o alto arredondado da montanha. Depois da chuva de setembro, que também cai morna e evapora ao mesmo tempo, tudo adquire um brilho de tal transparência que mostra a alma das coisas, o seu avêsso. Nesses dias as içás saem dos seus túneis subterrâneos para o vôo nupcial e numa dança inocente alcançam o céu. Nesse momento é que o bicho homem, feito um tamanduá, disputa com os pássaros o que será, logo mais, transformado numa iguaria. Foi aí que conheci este costume de toda a gente do Vale do Paraíba.

Monteiro Lobato [que nasceu em Taubaté] foi um grande apreciador da iguaria e a ela se refere em vários textos de sua obra sempre plena de indicações de caráter folclórico. Lobato, certa vez, disse que a içá é o caviar da gente taubateana. Tinha que descobrir. Restava-me enfrentar tal desafio para, ou ingressar nas fileiras dos apreciadores, ou bater em retirada definitivamente. Enfrentei arrepios em pensamentos, revi conceitos de comestíveis mas tinha de aguçar meu eu curioso e aceitar um convite para a confraria de tão exótica degustação.

No grande dia o cheiro de mel que as içás, durante a fritura exalam, me enjoava por saber ser da fêmea de saúvas aladas. As cadeiras dispostas em círculo na sala de visitas, a falação alegre das pessoas, o cheiro amanteigado, sabia que seria mal educado recusar a rodada de içás, nobremente servida, enfarinhadas nas bandejas.

Confesso que arranjei uma coragem emprestada e com quase dor na ponta dos dedos, dispostos em pinça e em câmera lenta, como num close que a câmera dá na cena principal de um filme, icei o iça, que se tornou pesado e imóvel por instantes eternos diante dos olhos [semicerrados] em pequena fresta [só para não errar a boca], ai! eu salivava o desconhecido. Rufaram os tambores e por entre os dentes em sorriso amarelo, descobri o inusitado: içá tem gosto de camarão! Delicia!

Fui devidamente batizada na tradição do povo taubateano e hoje sou toda prosa pela minha valentia e pela aquisição de conhecimento inusitado!

Disse Sérgio Buarque de Holanda em "Caminhos e Fronteiras":

("… A içá torrada venceu todas as resistências, urbanizando-se mesmo, quase tão completamente como a mandioca, o feijão, o milho e a pimenta da terra. Pretendeu-se que os jesuítas, no intuito de livrarem as lavouras da praga das saúvas, tivessem contribuido para disseminar entre os paulistas o gosto por essa iguaria. Nada há de inacreditável em tal suposição,uma vez que já os primeiros escritos de missionários inacianos em terra brasileira, mencionam a içá como prato saboroso e saudável. Nos meses de setembro e outubro, em que saem aos bandos essas formigas aladas, buscava-as com sofreguidão, nos seus quintais, a gente de São Paulo, e ainda em pleno século 19, com grande escândalo, para os estudantes forasteiros eram apregoadas elas no centro da cidade pelas pretas de quitanda, ao lado das comidas tradicionais: biscoito de polvilho, pés-de-moleque, furrundum de cidra, cuscuz de baqre ou camarão, pinhão quente, batata assada ao forno, cará cozido…").

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