Corpos em disputa: por uma escola que não normalize a exclusão
Reflexão mostra como a escola, sob o discurso da inclusão, muitas vezes reforça exclusões e pede rupturas com a lógica produtivista e normativa do sistema.
Publicado 19/05/2025 10:00

Muito se fala sobre inclusão nas escolas. Há cartazes coloridos nos corredores, projetos de convivência, formações sobre empatia, escuta e diversidade. Mas há uma armadilha nesse discurso que precisa ser desnudada. O que chamam de inclusão, muitas vezes, é só um jeito mais sofisticado de manter as coisas como estão. Porque a pergunta que raramente se faz é: incluir para quê? E mais ainda: quem pode, de fato, ser incluído?
Na prática, o que vejo – e vivi de perto, tanto em sala de aula quanto na coordenação pedagógica – é uma escola que opera no registro da produtividade. Não a produtividade do saber, do pensamento crítico, mas aquela baseada na lógica do desempenho, do controle, da adequação. A escola que elogia o aluno que copia rápido, que silencia o inquieto, que medicaliza o que foge da linha. Corpos que não se encaixam nessa engrenagem são tratados como problema. Ou se adaptam, ou são deixados à margem.
É nesse ponto que o discurso da inclusão se revela funcional ao capital. Ele não rompe com a lógica excludente, apenas a embeleza. Acolher, nesse modelo, significa tolerar o diferente desde que ele não abale o ritmo da turma, não atrase o conteúdo, não exija outro tempo, outro olhar, outra escuta. É uma inclusão que depende da capacidade do sujeito de se moldar ao que já está posto – e o que está posto é a norma burguesa, branca, cis, capacitista. O que se quer, no fundo, é o corpo útil, rentável, produtivo.
E é esse critério que define, na prática, quem será considerado deficiente. Não é o corpo em si que carrega a deficiência, mas o olhar do capital que o mede por sua capacidade de produzir lucro. O que não performa segundo esse padrão é rotulado como inapto, incapaz, um peso para o sistema – quando, na verdade, a deficiência está nas estruturas que não reconhecem esses sujeitos como plenos de humanidade e potência.
Como nos ensinou Michel Foucault, a escola – junto com outras instituições – age como um aparelho de vigilância e normatização. Ela não apenas ensina conteúdos, mas modela comportamentos, regula gestos, define quem merece fala e quem será disciplinado. Já Silvia Federici, ao analisar a história da acumulação capitalista, escancara como o corpo – sobretudo o corpo dissidente, o corpo feminino, o corpo não-eficiente – sempre foi alvo da violência institucional e da lógica da utilidade.
Mas é preciso dizer também que essa exclusão não se distribui de forma aleatória. Não é qualquer corpo deficiente que será abandonado. São majoritariamente os corpos negros, pobres, periféricos, com deficiência ou diagnóstico. Basta olhar os dados: a maior parte das deficiências não diagnosticadas, não atendidas ou ignoradas pelas redes públicas está concentrada entre as populações vulnerabilizadas – crianças negras, filhos da classe trabalhadora, moradores das franjas urbanas.
A deficiência, no capitalismo, é também uma questão de classe e raça. É o capital que estabelece os padrões do que é normal, do que é funcional, do que merece investimento. O resto, ele abandona – e a escola, quando não resiste, reproduz essa lógica.
Na escola pública, onde atuei com jovens e adultos negados pelo sistema, com adolescentes marcados pelo fracasso escolar, e com crianças diagnosticadas antes mesmo de serem escutadas, percebi que a exclusão não é um acidente. Ela é estruturante. A diferença, quando não é absorvida pelo discurso da “superação”, é descartada como déficit. O capitalismo não lida bem com corpos que não rendem. E a escola, infelizmente, tem sido uma extensão desse modelo, mais preocupada em preparar para o mundo do trabalho do que em formar sujeitos plenos.
Essa constatação não é apenas teórica. Ela é profundamente pessoal. Tenho uma filha trans, adolescente, inteligente, sensível, com potência de mundo. Vi de perto o quanto a escola, mesmo com todos os discursos de diversidade, é incapaz de acolher de fato quem escapa da norma. Vi como o cuidado vira favor, como o direito vira concessão, como a diferença vira problema. Lutamos juntas, eu e ela, não por tolerância, mas por dignidade.
Falar de inclusão, portanto, exige ir além da estética do acolhimento. É preciso confrontar a lógica que mede corpos e mentes por sua utilidade, sua eficiência, sua produtividade. É preciso questionar por que certos saberes e sujeitos continuam sendo considerados “inadequados” ao ambiente escolar. E, principalmente, é preciso disputar a escola como espaço de humanização, onde a diferença não seja apenas tolerada, mas seja parte da construção do comum.
A verdadeira inclusão não é adaptação. É ruptura. É recusar a escola que pede silêncio aos que sofrem, que exige obediência dos que precisam de liberdade, que rotula em vez de compreender. É reconhecer que todo sujeito, ao nascer, tem o direito de acessar o conhecimento historicamente produzido pela humanidade – e que a função da escola é socializar esse conhecimento, e não filtrá-lo por critérios de performance. Isso é condição para a emancipação.
Queremos uma escola que não se contente em “suportar” o diferente, mas que se levante contra o sistema que o exclui. Uma escola que afirme, com radicalidade, o direito de todos os corpos a pensarem, aprenderem, intervirem. Porque todo corpo carrega um mundo – e a escola precisa ser o lugar onde todos esses mundos possam se encontrar, se estranhar e se transformar. E que nunca esqueçamos: o que chamam de deficiência, muitas vezes, é só a recusa do capital em reconhecer como legítimos os corpos que ele não consegue explorar. O nome disso não é limite individual. É opressão de classe. E a escola precisa tomar partido.