Cuba e MST: herdeiros da resistência, símbolos da utopia

Em janeiro, no dia 1º, os socialistas e comunistas de todo o mundo comemoraram os 50 anos da Revolução Cubana. No mesmo mês, no dia 20, os lutadores dos movimentos sociais festejaram os 25 anos de criação do MST. Entre ambos, a síntese da luta pela mudanç

Não foi por nada que o discurso quase uníssono da grande mídia, impossibilitada de negar estes dois grandes marcos da história contemporânea, se resumiu a dizer que ambos foram movimentos desviados de suas finalidades com o passar dos anos. Nada mais compreensível para uma mídia burguesa que, estrategicamente, para cumprir sua função de classe, procura problemas no varejo para condenar no atacado.



Em 1959, depois de José Martí, do assalto ao Quartel de Moncada e de Sierra Maestra, a luta anticolonialista e antiimperialista na América Latina alcançou outro patamar com a conquista dos cubanos liderados Fidel e Raul Castro, Ernesto ‘Che’ Guevara, Camilo Cienfuegos e milhares de militantes.


A deposição de Fulgêncio Batista e tudo o que representava seu governo, como a submissão ao imperialismo ianque que fez transformar Cuba em um quintal de negociatas escusas, marcada pela jogatina e pela prostituição, foi uma das maiores conquistas de um povo que trazia na luta anticolonial e antiescravista seu passado glorioso.



De 1959, passando pela crise dos mísseis, pelas várias tentativas de assassinato de Fidel (a maioria coordenada pela CIA), pelo fim da URSS (responsável por parte do aporte econômico para sustentar politicamente as transformações sociais), Cuba deu saltos extraordinários nas estruturas educacionais, de saúde, intelectuais e desportistas. Não fez mais, certamente, devido ao criminoso bloqueio econômico imposto pela potência vizinha que, derrotada política e moralmente, apelou para a força militar e dos dólares para impedir maiores mudanças nas estruturas caducas que Cuba herdou depois de séculos de exploração.



Cuba, não sem problemas, sobretudo de ordem econômica, enfrentou e vem enfrentando toda essa adversidade, mesmo com uma oposição tenaz em nível internacional e dissidentes internos ainda marcados pela concepção pequeno-burguesa de mundo, a qual confronta liberdades individuais versus ganhos sociais.



Entretanto, passados cinqüenta anos, todos aqueles que lutam pelo progresso social, que não medem esforços para a defesa da igualdade, muito mais ampla do que as genéricas e universalizantes abstrações da liberdade e da fraternidade, souberam reconhecer na Revolução Cubana a herança e a tradição de um movimento que sobrevive, mais agora que o neoliberalismo começa a ter suas primeiras grandes derrotas táticas. Seja com os processos eleitorais que apontaram novos rumos políticos para a América Latina (de Chávez a Morales, de Corrêa a Ortega e Lugo, passando pelas tímidas mudanças do Brasil de Lula, do Uruguai de Tabaré e do Chile de Bachelet.), seja pela crise econômica mundial do capitalismo, razões mais que alvissareiras para questionar o discurso do “pensamento único” que passou as últimas décadas a pregar a farsa da mão invisível do mercado, as privatizações como solução das mazelas sociais e a desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas como panacéia para o crescimento econômico.



Pois foram os cubanos e a sua revolução que marcharam contra a maré neoliberal, enquanto outras experiências socialistas sucumbiram ao retrocesso capitalista, até mafioso, como o exemplo maior da URSS.



Os cubanos foram timoneiros da resistência e tudo o que for dito contra esta a história já está julgando. No refluxo dos movimentos sociais e políticos da América Latina, no encolhimento dos movimentos operários e sindicais diante da maior ofensiva imperialista e belicista que o mundo jamais viu, foi a Revolução Cubana o bastião de todos aqueles que não se iludiram com o individualismo e o irracionalismo reinante dos últimos tempos.



Este é o conteúdo insuportável para aqueles que lideraram a ofensiva neoliberal sem conseguir com que Cuba sucumbisse. Esta é a baliza dos muitos lacaios da mídia, da academia e da política que abandonaram a utopia revolucionária no primeiro revés da correlação de força que pendeu conjunturalmente para o bloco capitalista de hegemonia norte-americana, teimando em decretar o “fim da história” para o lado do liberalismo conservador e seus discursos pós-estruturalistas de inexistência da realidade.



Em 1984, depois da secular resistência indígena e quilombola, depois de Canudos e Contestado, depois das Ligas Camponesas e todas as lutas pela reforma agrária, depois da Comissão Pastoral da Terra, a democratização do acesso à terra alcançou sua divisa política com a criação dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, no Brasil.



Herdando as tradições de todos aqueles que morreram lutando pela terra no território dos sonhos bolivarianos, enfrentando o latifúndio e a resistência armada e manchada de sangue de muitos grandes proprietários, este Movimento colocou na ordem do dia o questionamento de nossa formação histórica permeada pelas capitanias hereditárias e doação de sesmarias, pela Lei de Terras de 1850, verdadeiras reformas agrárias às avessas que construiu e solidificou o latifúndio monocultor e agrário-exportador em nossa História.



Nem as lutas progressistas do anticolonialismo que conquistou a Independência, do anti-escravismo que norteou a República e do anti-coronelismo que resultou no nacionalismo varguista foi conseqüente a ponto de mexer com a estrutura da terra em nosso País. Em 1822 ficaram intactas as estruturas escravas e agro-exportadoras, em 1889, a reforma agrária não veio e, depois de 1930, a burguesia industrial nascida pela acumulação do capital agrário e mercantil não mexeu no latifúndio. Improdutivo, porém à serviço do seu sócio imperialista e multinacional, a modernização conservadora do campo trouxe a mecanização e a capitalização agro-pecuária, incluiu o Brasil no topo do excludente agro-negócio, mas expulsou milhões do campo para a cidade, contribuindo para o aumento da miséria e da desigualdade social.



Se em 1934 a renda industrial já ultrapassava a renda agrícola, fazendo com que em menos de três décadas invertêssemos a proporção 70% da população no campo, 30% na cidade, foi o Golpe de 1964 que marcou a última fase do modelo colonial e dependente que precisava deter o movimento social para consolidar a reinserção capitalista de nossas classes dominantes na divisão internacional do trabalho durante a chamada Guerra Fria.



Este recorde histórico e sem precedentes de passagem da população rural para a urbana construiu um país desigual no campo e na cidade, através de um campesinato e de uma massa de pequenos agricultores majoritariamente empobrecidos, com uma legião de sem-terras e multidões de sem-trabalho e sem-teto nas grandes e médias cidades do Brasil. Sem reforma agrária, a política agrícola do governo civil-militar pós-1964 criou zonas de colonização para migrantes internos, optando por compra de terras baratas ou inserção de contingentes populacionais em terras devolutas e indígenas, aumentando a crise agrária e empurrando ad infinitum a solução para os problemas do campo.



Esta política foi complementada pela opção repressiva que extinguiu as Ligas Camponesas, o MASTER ou outras combativas organizações de luta pela terra, enquadrou o sindicalismo do campo e matou, torturou ou exilou suas principais lideranças.



Nada disso adiantou para o sucesso histórico das classes dominantes brasileiras, autoritárias por opção política e reacionária por condição histórica de submissão ao imperialismo e ao latifúndio. A Política econômica da Ditadura foi “milagrosa” até o momento em que as lutas sociais da cidade e do campo desmascaram a oitava economia do mundo alicerçada ma miséria dos trabalhadores agrícolas e urbanos.



Não foi mera coincidência que o MST nasceu nos estertores da Ditadura que assolou o Brasil de 1964 a 1985. Entre acampamentos, muita estrada e vários assentamentos conquistados, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra completa um quartel de exemplo pedagógico de luta pela terra, mesmo que colocado na parede pela mídia conservadora, criminalizado pelo discurso elitista e pelas ações jurídico-políticas daqueles que tem como único propósito a defesa da histórica trajetória de concentração da terra e da manutenção dos conflitos agrários em nosso País. Hoje não é o único movimento de luta pela terra, mas sem dúvida aquele de maior repercussão e integrantes.



A trajetória do MST é inversamente proporcional ao exemplo romântico e novelesco de versões globais onde a questão agrária é vista pela ótica do latifúndio, a qual prega a harmonia social na ficção, mas cria exércitos paralelos e paramilitares de jagunços no cotidiano das fazendas.



A violência no campo, diferente de determinado discurso descontextualizado e hipócrita, vitima obviamente um contingente desproporcional de lutadores pela terra em comparação com os mortos nas esferas do aparato policial ou proprietário. Que o digam os massacres da Fazenda Santa Elmira, no Rio Grande do Sul, e de Eldorado dos Carajás, no Pará.



Por isso, a herança do MST nunca foi a “simpatia popular” construída pelo Movimento a partir de leituras divulgadas pela mídia ou pela academia, mas sim a herança da luta pela terra, no mínimo com 508 anos de tradição. E esta se mantém intacta.



Nem o insucesso de algumas experiências de assentamentos, nem os exemplos individuais de desvirtuamento de integrantes da luta superam o conteúdo da questão que é a desigual distribuição da terra no Brasil. Muito menos deslegitimam as ações táticas e estratégicas de luta pela terra – maiores e mais importantes que erros pontuais de atuação -, constantemente criminalizadas por argumentos que procuram isolar o movimento da sociedade como se o próprio MST fosse algoz de si mesmo.



Nem as opções diferenciadas e sempre discutíveis de repartição da terra pelos seus integrantes, sejam por lotes individuais ou por cooperativas agrícolas, com baixa ou alta tecnologia, embrionárias de caminhos socializantes, escondem a unidade que mantém o movimento por tanto tempo: enfrentar o coração do latifúndio, a extensiva propriedade da terra herdada do Antigo Sistema Colonial e a secular posição política conservadora dos proprietários que insistem num modelo agrário excludente, controlado pelas transnacionais.



Por isso foi tão simbólica a conquista dos assentamentos na região de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, no centro conservador da FARSUL (que faz o papel de intelectual orgânica da UDR no estado), nos finais de 2008, incorporando em torno de 1.500 famílias. Fazendas improdutivas, classe proprietária que alcunhou os sem-terra de “ratos” e chegou a propor o envenenamento dos integrantes do movimento, defensores de um tradicionalismo conservador que mitifica a trajetória de Sepé Tiaraju, morto na região na Batalha de Caiboaté bradando “Esta terra tem dono!”, tudo isso gerou um quadro no qual as fazendas repartidas mostram o caminho vitorioso iniciado na Fazenda Annoni, em Sarandi, na retomada da luta pela terra durante a Ditadura Civil-Militar, finalmente desapropriada em 1985, mesmo ano do I Congresso Nacional, realizado justamente em janeiro, em Curitiba.



Entre a foice dos sem-terra e a estrela cubana, entre os 50 anos da Revolução e os 25 do Movimento, surge a dimensão política através do amálgama em torno de Che Guevara, exemplo para os irmãos cubanos na luta pela liberdade e contra a monocultura da cana, símbolo para os companheiros sem terra de um novo mundo a construir. Por isso, em 2009, os revolucionários cubanos e os lutadores sem-terra se mesclam para solidificar a utopia da nova sociedade, socialista por transição, sem classes por definição.



Justamente aqui está o conteúdo intolerável para as classes dominantes latino-americanas e brasileiras, as quais desesperadamente utilizam o Partido da mídia para fazerem valer seus propósitos não-mudancistas, como na atuação da UDR e do Centrão na última Constituinte, na ação das atuais Sociedade Rural Brasileira (SRB) e Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA), imperialistas e latifundiários por opção política, execradores ideológicos do 1959 cubano, do 1984 sem terra.



Nesse debate não há a parte de cima do muro: o Fórum Social Mundial deste ano, iniciado em Belém do Pará, no dia 27, saberá rememorar estas duas conquistas. Viva o 1º de janeiro de 1959!!! Viva o 20 de janeiro de 1984.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor