Efemérides das ditaduras militares

Efemérides reflexivas e necessárias das ditaduras militares: 42 anos no Brasil, 30 na Argentina

"…Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda…"(Cecília Meirelles em Romanceiro da Inconfidência)

Somos um pouco mais velhos do que nossos vizinhos, não menos doloridos. Da mesma forma como a Argentina, pelos seus trinta anos, passados em 24 de março, nós brasileiros rememoramos 42 anos. Quando Cecília escreveu os versos acima, em 1953, talvez não imaginasse que o Brasil passaria por uma longa ditadura, nem que não sobrevivesse poucos meses além do março de 1964[1].

Há mais de quatro décadas, João Goulart foi deposto por Golpe Militar; Miguel Arraes, governador de Pernambuco, foi preso pelas tropas do IV Exército; o prédio da UNE, no Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio criminoso e logo a entidade oficialmente extinta; iniciaram censuras, prisões, torturas, desaparecimentos e exílio de lideranças políticas, camponesas, sindicais, estudantis, funcionários públicos e intelectuais, além da suspensão de direitos políticos de ex-presidentes e outros políticos; a polícia militar invadiu a Universidade de Brasília; foi criado o famigerado Serviço Nacional de Informações … Viria muito mais.

Como já disse o filósofo Caio Navarro de Toledo, 1964 foi um Golpe contra a incipiente democracia política brasileira, contra as reformas políticas e sociais, contra a politização das organizações da sociedade civil (Ligas Camponesas, CGT [2], UNE, Partidos de esquerda PCB ou PCdoB) e contra o debate cultural e intelectual que vivia o País (Centros Populares de Cultura e Movimentos de Educação de Bases, Revistas como a Brasiliense e muitos jornais populares), destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais progressistas. Um golpe reacionário da direita e das classes dominantes e seus ideólogos, civis ou militares, como explicou o também filósofo João Quartim de Moraes, tendo atrás de si o suporte estratégico, político e militar dos Estados Unidos.

Basta lembrar da Operação Brother Sam que deixou navios americanos e porta-aviões a postos, caso o Golpe fracasse internamente, e dos incontáveis recursos de milhões e milhões de dólares e cruzeiros destinados ao Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), os quais explícita ou sorrateiramente articularam a opinião pública para o apoio à ditadura após a Campanha da Legalidade em 1961.

Em 1964: a conquista do Estado, o saudoso René Dreifuss demonstrou com farta documentação como empresários, banqueiros e outros, nacionais e estrangeiros, contribuíram para a fomentação do Golpe no Brasil. Entre eles o Banco Itaú, a Sul-América Capitalização, a Esso, a Cia. Merck do Brasil, a Ultragás, as Lojas Americanas, a Antártica Paulista, a Brahma, a Coca-Cola, a Kibon, a Souza Cruz, a Melhoramentos, a H. Stern, a Klabin Celulose, a Cia. Doca de Santos, a Light Serviços de Eletricidade, a Votorantin, o Estadão, a Folha de São Paulo e muito outros. A ditadura e os seus instrumentos militares se foram, mas muitos de seus patrocinadores continuam ativos, impedindo que o Brasil trilhe os caminhos das mudanças econômicas e da justiça social necessárias, a maioria delas já colocadas na ordem-do-dia antes mesmo de 1964.

Como na Alemanha nazista, que teve o suporte da Wolkswagen, da Lufthansa, da Bayer e tantas outras grandes empresas, mas responsabilizou apenas o hitlerismo, no Brasil, uma história midiática ainda reproduz a versão da responsabilidade da ditadura apenas aos militares, através de categorias conceituais que pouco explicam a aliança civil-militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, como “Anos de Chumbo” ou “Guerra Suja”. Esta estratégia discursiva, calcada nas meias-verdades direcionadas para os interesses das classes dominantes, de forma idêntica como fazia a propaganda dirigida por Goebbels na Alemanha pós-1933, apenas mostra a “ponta do iceberg” da ditadura militar no Brasil, quando os militares foram a parte visível de um enorme bloco de gelo, sustentado pelas elites estrangeiras e seus sócios nacionais, os quais foram e são avessos as transformações estruturais que o Brasil necessita, mesmo passados 21 anos do fim da ditadura.

Na Argentina, em 1976, a ditadura depôs Isabelita Perón e tomou seus bens, suspendeu sindicatos e partidos políticos, fechou o Congresso e afastou políticos do governo e ministros do Supremo Tribunal, liquidou os grupos guerrilheiros dos Montoneros e do Exército Revolucionário do Povo, deteve e torturou milhares de opositores, seqüestrou crianças cujos pais foram assassinados, tendo como saldo mais de 30 mil desaparecidos. No país vizinho, a ditadura civil-militar desestruturou a indústria nacional, com uma política entreguista que só teria similar com o neoliberalismo de Menem, arrochou salários, proletarizou a pequena burguesia e priorizou a produção agropecuária, favorecendo multinacionais, grandes bancos e latifundiários. Por outro lado, como no Brasil, a ditadura desestruturou as organizações de massa, suspendeu a liberdade de imprensa e introduziu rigorosa censura. O resultado desse processo foi a crescente miséria social, o desemprego crescente, o aumento dos sem-teto e sem terra e o crescimento da violência urbana. No Brasil, a dívida externa em 1964 era de 4 bilhões de dólares, terminando em 1985 em 100 bilhões, enquanto na Argentina de 1977 era de 8 bilhões, somando 45 bilhões quando terminou a ditadura em 1983.

Não bastasse a repressão interna (DOI-CODI, CENIMAR, OBAN, SISSEGIN, DOPS, ESMA [3] e outros centros clandestinos de informação, detenção e tortura, etc.), Brasil e Argentina foram peças importantes da Operação Condor que organizou a repressão internacional no Cone Sul e institucionalizou o terrorismo de Estado, permitindo a perseguição da oposição política nos países que fizeram os acordos secretos para que suas polícias cassassem militantes no estrangeiro. Assim, desapareceram brasileiros na Argentina como o pianista Francisco Tenório Júnior que acompanhava Toquinho e Vinícius de Moraes, o estudante de História e Militante do POC[4], Jorge Albero Basso, o estudante de medicina Luiz Renato do Lago Faria, a companheira de Emir Sader e militante Maria Regina Marcondes Pinto, o estudante de engenharia Roberto Cascardo Rodrigues, o dirigente do PORT[5] Sidney Fix Marques dos Santos e Walter Kenneth Nelson Fleury.

No Brasil, durante o governo Figueiredo desapareceram os argentinos Horácio Domingo Campiglia, Monica Pinus de Binstock e Lorenzo Viñas, além de manter-se a incógnita sobre os desaparecidos que constavam de lista brasileira de procurados desde 1976 como Aldo Melitón Bustos Vergara, Alfredo López, Antonio Armando Arias, Antonio Horacio Arrue, Antonio Milagro Villanueva, Arturo Martín Garin, Berta del Carmen Torres, Carlos Rafael Espeche Díaz, Roberto Carlos Pasero, Crescencio Vargas, Horacio Daniel Olivencia, Eduardo Lazart, Gladis del Valle Porcel de Puggione, Guillermo Arrue, Hector Nicolas Brizuela, Horacio Santos Nuñez, Hugo Alfonso Massuco, Hugo Hernán Pacheco, Matilde Itzigshon de García Camppanini, Nora Schiapponi e Norma Alicia Schipanni de Sasso.

Passados estes anos todos, 42 no Brasil e 30 na Argentina, em que gerações foram proibidas de pensar e concretizar mudanças para seus sofridos povos, nossos problemas ainda são grandes. As ditaduras foram derrotadas pela resistência das greves, das guerrilhas, etc., juntamente com as contradições objetivas que os governos militares geraram, como nos fracassos dos seus “milagres econômicos”.

Mas a luta de resistência, seja armada, seja institucional, marcada pelas mães da Praça de Mayo ou pela Anistia e Diretas Já, entre outros, também resgatou o direito de gritar que não concordamos com muito do que ainda está aí: a desigualdade social, a violência cotidiana, a privatização de nossas Repúblicas, a corrupção, as guerras (como a das Malvinas), o domínio estrangeiro.

Estamos conquistando também o direito de abrir nossos arquivos e chegar à responsabilidade histórica dos crimes cometidos em nome da tradição, da família, da propriedade e da “civilização ocidental”. No ano passado, na Argentina, Néstor Kirchner pôs fim a “lei do ponto final” e da “obediência devida”, a fim de que sejam apurados todos os crimes cometidos pela ditadura de 1976 a 1983. No Brasil, pela pressão da sociedade civil e dos partidos políticos de esquerda, foram abertos parte dos arquivos da Ditadura, a fim de que possamos reconstruir este processo histórico de medos, incertezas e tiranias comandadas por Médicis, Videlas e outros. Falta muito, mais ainda para que a verdade histórica e a justiça política sejam resgatadas.

Como na Argentina, que tenhamos também uma Semana da Memória, em recordação por aqueles que não estão mais entre nós, que tiveram as suas vidas ceifadas ou as deram pela liberdade de podermos dizer nas praças simples palavras como: sou contra! Ditadura militar nunca mais!

Sobretudo quando comemoramos em 26 de março os 15 anos do Tratado de Assunção, que originou o Mercosul, projeto de integração que ainda mantém a lógica comercial e empresarial, mas é um passo importante para a contraposição à Alca e os objetivos norte-americanos de subjugar nossos países. Precisamos uma integração muito maior: cultural, política, social e do mundo dos trabalhadores, superando a atual fase de relativa paralisia das negociações. Sobretudo, uma integração de amizade de nossos povos, sabendo que nunca fomos os inimigos construídos por discursos geopolíticos que nos impuseram armas, dissensões, pequenos conflitos e rivalidades culturais e desportivas, quando o objetivo maior sempre foi nos submeter política e economicamente.

Gritemos aos ventos e às pessoas que ainda queremos um mundo diferente, cultural e etnicamente diverso, mas socialmente igualitário. Gritemos sempre para que o 31 de março de 1964 e o 24 de março de 1976 nunca mais aconteçam.

Como disse o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, “devemos insistir em uma memória que, em primeiro lugar, construa o lugar da violência e do arbítrio em nossa história recente (…) para além dos interesses imediatos dos políticos que articularam as chamadas aberturas, convencidos dos méritos do esquecimento”. Por isso, hoje a epígrafe da poeta carioca, apresentada acima, se tornou tão cara para nós brasileiros. Também para os argentinos e outros povos que passaram pelas experiências aqui refletidas.
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Notas

[1] Cecília Meirelles faleceu no Rio de Janeiro. em 9 de novembro de 1964.

[2] CGT – Confederação Geral dos Trabalhadores.

[3] ESMA – Escola Superior de Mecânica da Armada, na Argentina. Ali morreram 4.400 prisioneiros, sendo hoje um espaço para a memória e promoção dos direitos humanos.

[4] POC – Partido Operário Comunista.

[5] PORT – Partido Operário Revolucionário Trotskista.

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