Jornal Nacional: Responsabilidade social e merchandising

A pauta é nobre e “quente”. Uma série de reportagens sobre transplantes de órgãos aproveitando o mote do lançamento, pelo Ministério da Saúde, da Campanha Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos. O ponto de vista, ao contrário do que se habituou esperar da

Na edição seguinte do Jornal Nacional, porém, surge uma incômoda pergunta para quem assiste ao telejornal e torce para que mais e mais brasileiros tenham uma segunda chance: qual o limite entre a veiculação de uma campanha sobre doação de órgãos humanos na maior rede concessionária do serviço público de radiodifusão do país e a utilização dessa campanha como instrumento de merchandising do jornalismo dessa própria rede de televisão? Em outras palavras, qual o limite entre o jornalismo com responsabilidade social e o merchandising da responsabilidade social para legitimar a função social do jornalismo?


 


Morte cerebral


 


Os telespectadores não tiveram como escapar a essa questão diante de duas reportagens da série sobre transplantes.


 


No dia 25/09/07, a segunda reportagem da série ganhou a manchete principal da escalada:


 


** “Petrolina, Pernambuco. O disparo acidental de uma arma tira a vida de uma menina de 10 anos. Jéssica era uma brasileira solidária e tinha assistido às reportagens do Jornal Nacional.”


 


Corta para o pai da menina. Diz ele, em depoimento pungente:


 


“Ela falou para a avó dela que um dia, quando ela morresse, fizessem o mesmo, doassem alguma coisa dela”.


 


Volta a manchete:


 


** “E os órgãos da menina ajudam a salvar outras crianças.”


 


Na matéria de 3min45s – uma “eternidade” na TV –, a repórter Mônica Silveira conta como um acidente não explicado entre três crianças que brincavam com um revólver guardado em casa resultou na morte da menina. Enfatiza a repórter, ao longo da matéria:


 


“Quando os médicos constataram que Jéssica teve a morte cerebral, a família logo lembrou do que a própria menina tinha dito no fim de semana. Jéssica assistiu ao Jornal Nacional, que tem mostrado as histórias de pessoas que receberam órgãos doados.”


 


Vinte e dois dias


 


A reportagem narra a saga dos órgãos retirados do corpo de Jéssica – o fígado, as córneas, os rins – e transplantados em outras crianças a quilômetros de distância. É o primeiro transplante da central de Petrolina, Pernambuco.


 


Um médico esperançoso – o número de transplantes de fígado no mês de setembro, naquele estado, passou da média de três para seis – identifica “a campanha” como a responsável pelo avanço. Declara ele:


 


“Isso é um reflexo da campanha que está sendo feita. A população responde. As pessoas deixam de negar. As pessoas que trabalham nos hospitais passam a notificar à central de transplantes de órgãos, e com isso, a gente pode salvar muito mais vidas.”


 


A qual campanha o médico entrevistado se refere? A do Ministério da Saúde ou a do Jornal Nacional?


 


Na quarta-feira (26/9) vai ao ar a terceira reportagem da série. A doação dos órgãos de Jéssica continua a ganhar destaque no espelho do telejornal. Além disso, o próprio Jornal Nacional, como um personagem da matéria, insiste em demonstrar seu papel na vida dos cidadãos:


 


Diz o primeiro parágrafo da reportagem:


 


“Há sete anos dona Vilma começou uma viagem pelo Brasil em busca de novas córneas para o filho mais velho, que na época tinha 12 anos. Depois de assistir a uma reportagem do Jornal Nacional, ela saiu de Bom Conselho, onde vivia no agreste de Pernambuco, e foi até Sorocaba, em São Paulo.”


 


Dona Vilma confirma em testemunho semelhante aos muitos que são apresentados diariamente nos canais de proselitismo religioso:


 


“Eu assisti no jornal uma reportagem que estava sobrando córnea em Sorocaba. Foi uma viagem de 22 dias, foi cansativa, mas valeu a pena”.


 


Drama humano


 


O tema da doação e transplante de órgãos humanos foi pauta também nos telejornais da Band e da Record. Por outro lado, não é novidade que telejornais façam chamadas ostensivas para outros programas de suas redes. Na sexta-feira (28/9), até os telejornais locais da Rede Globo fizeram “reportagens” sobre o mistério da telenovela Paraíso Tropical: quem matou Taís, a gêmea malvada? O que parece ser novidade agora é a necessidade de o Jornal Nacional enfatizar a sua própria influência no cotidiano dos brasileiros.


 


Qual critério jornalístico justificaria a relevância dada ao próprio Jornal Nacional, isto é, a ênfase na auto-referência? Se fizéssemos um exercício simples de exclusão do “personagem” Jornal Nacional das duas reportagens, estaríamos incorrendo em algum erro factual? Faltando com a verdade? Diminuindo a relevância das comoventes histórias contadas?


 


Os teóricos da indústria cultural diziam que ela se realiza plenamente quando seu conteúdo, transformado em mercadoria, se confunde com o anúncio permanente de si mesma.


 


Será que o jornalismo para ser “um produto de utilidade social” e “uma área de utilidade pública por excelência” – como já afirmou o editor-chefe do JN – precisa fazer uso de uma lógica disfarçada na qual se reafirma a toda hora como produto de consumo indispensável?


 


Escondida na construção jornalística de um drama humano pode estar, na verdade, uma lógica que obedece, primeiro e acima de tudo, às exigências do “senhor” mercado. Mesmo que se trate de uma questão de vida ou morte.


 


* Por Venício A. de Lima e Liziane Guazina em 2/10/2007 originalmente em  http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=453TVQ001

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