Sílvio Pereira: Judas ou Madalena arrependida?

Seja qual for a conclusão, a atitude de Pereira tem grande influência na história do combate político brasileiro entre forças progressistas e conservadoras.

As razões que levaram o ex-secretário-geral do Partido dos Trabalhadores (PT), Silvio Pereira, a conceder entrevista ao jornal O Globo em termos comprometedores para ele são ainda desconhecidas. Há duas interpretações na praça. Uma, manifestada pelo presidente petista Ricardo Berzoini, diz que Pereira “traiu” o partido; outra, expressa em nota assinada pela oposição — e aí se misturam num saco de gatos PSDB, PFL, PV, PDT e PPS —, afirma que ele fez um “apelo” por “um esquema permanente de proteção à sua vida”. Seja como for, o fato é que a entrevista fez a direita correr até a janela, colocar a cabeça para fora e agradecer aos céus, aos brados, por essa nova oportunidade de atacar o governo Lula. Que achado!

É preciso entender o episódio por uma lógica essencialmente política. Essa troca de pele de Pereira — seria ele um lobo vestido de cordeiro? — reforça as bravatas, o discurso fácil, o denuncismo estéril da oposição. A tática é óbvia: fazer a situação gastar energia preciosa em bate-bocas fúteis e tentar levá-la para becos sem saída. Ao mesmo tempo, desviar o governo daquilo que realmente importa: lutar para desenvolver o país, sanar suas mazelas, gerar mais prosperidade e qualidade de vida para todos. A direita tem em conta que esses novos ventos levariam ela e os “esquerdistas” para a segunda divisão do campeonato político. Por isso, abandona o jogo democrático e incita a torcida a invadir o campo institucional — papel sem dúvida bem desempenhado pela “grande imprensa”.


Uma grande notícia para a situação


Os êxitos do governo fazem a direita olhar para frente e ver um cenário bem diferente daquele deixado por ela em 2002. Ou seja: os conservadores têm convicção de que, no jogo limpo, o projeto de país que possivelmente será selado em 2006 embutirá uma continuidade em relação a essa nova realidade brasileira que vem sendo construída desde que Lula tomou posse. A oposição tem consciência de que é reconfortante para a maioria da população perceber que o Brasil de hoje é bem diferente daquele país alquebrado, em vários sentidos, por uma ditadura militar e por governos neoliberais que geraram desencanto cívico, estagnação econômica, debate político primitivo, corrupção institucionalizada em todos os níveis e baixa auto-estima em ser brasileiro.


Há um projeto em curso como seguramente não temos no Brasil desde Juscelino Kubitscheck. Há uma civilização se construindo, como só acontece em lugares que passam tempo consistente respirando os ares do debate democrático, refletido, e de consideração pelos anseios populares. E essa é uma grande notícia para a situação e uma péssima notícia para a oposição. Por isso, a direita não deixa o jogo ser jogado. Ao invés de termos onze jogadores vigiados por um juiz apenas, rigoroso, imparcial, que conheça o seu lugar e só apite quando e onde se fizer necessário, temos onze juízes vigiando o mesmo jogador. Além dos vigaristas que povoam a mídia, vire e mexe entra em campo algum promotor, algum delegado, algum artista para dar canelada.


FHC
desqualifica qualquer polêmica


Sobre o motivo — seja ele qual for — de Pereira ter aderido a essa tática de jogo, há duas considerações a serem feitas. A primeira é a natureza do processo eleitoral brasileiro. Não há dúvida de que o PT paga o preço de não ter se protegido contra a tecnologia de “caixa dois” desenvolvida pelos tucanos. A segunda é que a direita tenta se limpar criando um manto de fealdade para cobrir o cenário político brasileiro. O site do PSDB, por exemplo, publicou no dia 9 que o indiciamento do ex-prefeito de Ribeirão Preto, Gilberto Maggioni (PT), que sucedeu o ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci na prefeitura da cidade, foi interpretado por parlamentares tucanos como mais uma prova de que a corrupção é prática recorrente do PT.


Em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, no domingo (7), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) disse que o PT, “como organização, propicia a corrupção nas instituições”. Essa corrupção institucionalizada seria, segundo ele, resultado da própria construção ideológica do partido. Para o ex-presidente neoliberal, o PT mistura o público e o privado por acreditar que o partido pode transformar o Estado. Já no PSDB, segundo ele um partido muito mais “republicano”, isso não acontece porque há a divisão entre o que é público e o privado. “Nosso modo de fazer é muito mais democrático”, assegurou. Afora o fato de FHC ser FHC — o que desqualifica qualquer polêmica —, o assunto merece considerações.


A direita tenta fugir dos rótulos


O PSDB é o esteio de um condomínio de poder que já abrigou outras legendas — UDN, PSD e Arena, para ficar só no período desde que Getúlio Vargas modernizou o quadro partidário brasileiro — e várias vezes caminhou pelo outro lado da fronteira democrática para golpear qualquer projeto de país de corte nacional por meio do conluio e da negociata. Eles não podem simplesmente jogar o jogo porque o escopo ideológico que lhe corre nas veias já há muito está superado pela história. O que há do seu lado no espectro político são oligarquias e forças “esquerdistas” que compõem duas faces de uma mesma moeda pouco razoável e sem nenhuma chance de gerar um Brasil melhor. A direita tenta fugir dos rótulos que, não por coincidência, lhe caem bem.


Ela é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura social inaceitável que temos no país e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder político, dando sustentação a qualquer regime que protege seu senhorio. Seu projeto tem que prever a existência de perdedores, de um exército de excluídos, como forma de garantir seus privilégios. No âmbito político, o que para a o povo é considerado corrupção para os conservadores são apenas hábitos seculares. Para a direita, os sistemas democráticos não podem funcionar a contento porque se funcionassem eles definhariam a maior indústria brasileira, que perpassa todos os níveis de sua atuação, e atinge inclusive, acredite, o seu e o meu dia-a-dia: a da corrupção, do esquema, do caixa dois. Os conservadores instauraram por aqui, há muitas gerações, o império da gambiarra.


Duas grandes necessidades brasileiras


Não convém, para eles, que a democracia seja alargada. Onde impera a democracia de massas, os líderes da administração pública só chegam a seus cargos pelo voto do cidadão. No Brasil da direita, são enviados para Brasília, por meio das urnas dominadas pelo poder econômico, traficantes de drogas, estelionatários, mandantes de assassinatos, lavadores de dinheiro. Verdadeiros Manchas Negras e Irmãos Metralha — e alguns Superpatetas — posam de vestais nas CPIs, protagonizando situações tragicômicas, excruciantes, de desesperador ridículo. Gente habituada ao tráfico de influência e à falta de transparência dos acordos fechados entre quatro paredes fala de “ética” como valor inegociável. Um escárnio.


Com atitudes como essa de Pereira, no entanto, fica difícil enunciar a crítica a tudo isso. Afinal, aquilo que a esquerda sempre considerou maus hábitos passou a ser visto, pelo menos por uma parte da sociedade, como um feixe de tradições políticas de difícil remoção. No caso de uma vitória de centro-esquerda — pelo menos em princípio —, teremos condição de enfrentar essa polêmica com mais força. Um governo preocupado em integrar os excluídos, planejando os investimentos de forma organizada e privilegiando as áreas básicas, tem moral para promover a ampliação da democracia e buscar a equalização de duas grandes necessidades brasileiras: sermos desenvolvimentistas de verdade, no âmbito da economia; e solidários, humanistas de verdade, no trato das questões sociais.


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