Sobre nicotina e intolerâncias

O homem para o homem é uma caça.
Grande é a maldade no mundo inteiro.
Por isso junte bastante, mesmo com trapaça
Pois ainda é maior o amor ao dinheiro.
(…) Escreva em sua laje: Aqui Jaz Dinheiro.


(O Dinheiro de Berto

Cerca de dez anos atrás um conjunto de propagandas de determinado produto era veiculado na televisão brasileira. Uma delas, belíssima, de um visual extraordinário, construída por computação gráfica, levando o telespectador a confundir o que era real e o que era construção imaginária, tinha imagens impactantes. Uma moça muito linda, “surfava” em cima de um peixe todo colorido.


 


 
A mensagem, contudo, fora o objetivo da venda do produto, era o que mais impressionava. Seu conteúdo era afinado com as “novas” idéias do que muitos passaram a chamar pós-modernidade. Vivíamos o auge da ofensiva neoliberal. Havia caído o Muro de Berlim e a União Soviética chegara ao fim. Enfim, uma conjuntura favorável para a hegemonia do pensamento único.


 


 



No apelo irracional da propaganda, mesmo que poético, a mensagem era direta: “A realidade não existe! Tudo é sonho! Cada um na sua! Mas pelo menos a gente tem algo em comum!”. Daí, finalizava com a divulgação do nome do produto: free. Isto é, para ser livre, mesmo que seja a liberdade de morrer pela nicotina, você tem que negar o real, ser individualista e ser consumista. É isto que se quer de todos nós, atores sócio- culturais e justificadores ideológicos contemporâneos do relativismo e do egoísmo, enfim, sujeitos do capital.


 


 


Naquela mesma conjuntura, em 1997, na madrugada de 20 de abril, logo após o Dia do Índio, em Brasília – DF, o pataxó Galdino Jesus dos Santos, que, depois de reuniões, chegou tarde onde dormiria¸ encontrando o alojamento fechado, foi passar a noite em um banco de uma parada de ônibus de uma praça pública. Não sabia ele que jovens da Capital Federal, um deles menor à época, não toleravam ver alguém dormindo na rua. Incendiaram Galdino e ainda justificaram imaginar que fosse um mendigo. Para os assassinos era apenas diversão. Galdino e mais sete companheiros de seu povo, estavam na Capital Federal buscando apoio para suas reivindicações buscando a recuperação do território, invadido fazendeiros.


 



Dez anos depois as farsas continuam se repetindo, mais ainda como tragédias.
Cascavel – PR. Um trabalhador, buscando seus direitos, recorre à Justiça do Trabalho, mas o juiz não realiza a audiência, pois ele se apresenta “de forma incompatível com a dignidade do Poder Judiciário”: está sem sapatos e usa apenas um chinelo de tiras.


 



Rio de Janeiro – RJ. Empregada doméstica negra acorda na madrugada de um sábado, com as pretensões de ir a uma consulta médica. Na parada de ônibus, garotos de classe média alta lhe mandam direto para o hospital, depois de uma saraivada de pontapés. Argumentam preconceituosamente, após a prisão, pensarem tratar-se de uma prostituta. O pai de um deles clama que seu filho, universitário, não pode ser punido por um ato juvenil.


 



Dom Pedrito – RS. Um jovem torcedor, ajudante de pedreiro, negro, entusiasta de seu time, na derrota do clube adversário, tem seus pulmões arrebentados e é morto a pontapés por pessoas “de bem” do município.


 



Porto Alegre – RS. Nas calçadas em frente a UFRGS, na conjuntura de discussão sobre as políticas afirmativas e no ingresso na universidade federal, através de cotas para negros e oriundos de escolas públicas, frases são pichadas de forma clandestina ma madrugada: “voltem para a senzala”; “Negros: só se for na cozinha do Restaurante Universitário”.


 



Santa Maria – RS. Dois casais de amigos, um deles de namorados e acadêmicos, sendo um negro e uma branca, são cercados por vários jovens na madrugada. Ameaçadores proclamam frases infames: “como pode uma branca namorar um negro”.



Que dias tristes estamos vivendo!


 



Logo surgem buscas de explicações: os jovens não têm mais limites; as famílias estão desustruturadas, etc. A responsabilidade está sempre nos indivíduos, procurando-se discutir as conseqüências, nunca as razões mais profundas. Quanta hipocrisia!


 



São estes os valores que se quer de todos nós na atualidade, na chamada “Pós-Modernidade”, a qual poderia ser conhecida também como a “Era da Barbárie”? Querem que sejamos sujeitos sem preocupação com a realidade, individualistas e consumistas? Que noção de liberdade é esta? Depois, perplexos, vamos tentar achar explicações quando um garoto mata outro por um tênis de marca.


 



É hora de dizer um basta à intolerância, mas também procurar a essência dos fenômenos que a causam, entre elas, a noção de direito de jure e direito de facto, na qual, alguns são mais iguais que os outros. Senão, como explicar que um dos assassinos do índio Galdino foi promovido como dentista do Tribunal de Justiça do Distrito Federal após concorrer a 12 vagas para vigilante, sendo que obteve o 65º lugar e a presidência do órgão, casualmente seu pai, determinou o aumento das vagas para 70?


 



Tudo dentro da lei, enquanto os movimentos sociais continuam sendo criminalizados por lutar por direitos, quando se tenta limitar o direito de greve e quando boa parte da mídia instrumentaliza e banaliza a violência e a corrupção, despolitizando a sociedade política e entorpecendo a sociedade civil. Como a nicotina, procuram nos matar aos poucos e cotidianamente, para que, alienados e preocupados com a sobrevivência diante da violência e dos comezinhos da política, esqueçamos as raízes profundas de tudo isso e deixamos de lutar para uma sociedade para além do capital.


 



Basta de intolerância! Mas basta, também, da barbárie neoliberal e de suas idéias justificadoras e relativizadoras do atual estado de coisas, que nos transformam em monstros discursivos de negação dos sujeitos que articulam o processo histórico no rumo da transformação revolucionária da sociedade atual.

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