Uma aula de História do Brasil para meus alunos chineses

Aqui na China, apesar de já termos superado as fases mais difíceis em relação ao coronavírus, a volta à normalidade ainda é gradual. Assim, muitas atividades, como as aulas nas universidades continuam sendo realizadas pela internet. Nesse semestre, estou ministrando para uma das minhas duas turmas um curso sobre História do Brasil. Especialmente, decidi compartilhar aqui nessa minha coluna o conteúdo da aula desse 13 de abril de 2020, que teve por tema “O legado Português no Brasil”. Eis então alguns pontos das reflexões que compartilhei com os meus 23 alunos chineses.

Sobre o legado Português no Brasil.

 “Somos todos juntos uma miscigenação

e não podemos fugir da nossa etnia

Índios, brancos, negros e mestiços

Nada de errado em seus princípios…”

Etnia

(Chico Science / Lucio Maia)

O Brasil, enquanto país, é a principal obra criada pelos portugueses fora de Portugal. E, enquanto povo, nós brasileiros somos um resultado, não acabado, de um árduo processo de fusões étnicas, psíquicas e culturais. Nessa composição, a herança portuguesa, tanto nas suas virtudes quanto nos seus defeitos, continua a exercer um papel central na formação do nosso povo.

Além de um território unificado, o povo brasileiro herdou de Portugal um modo de ser, sentir e agir que se espalhou e se enraizou pelos rincões mais profundo do país. Desse grande legado lusófono, pelo menos três grandes elementos então presentes já na viagem de 1500 capitaneada por Cabral continuaram a moldar a alma do povo brasileiro e, consequentemente, a nossa identidade como nação: a fé cristã, a língua portuguesa e um intenso processo de miscigenação. Com todo respeito às enriquecedoras exceções, esses pilares são as forças estruturantes mais profundas que continuam a nos moldar, alegre e dolorosamente, enquanto povo. Negá-los é negar o Brasil.

Evidentemente, o ser brasileiro é uma síntese (não conclusa) de um profundo processo histórico onde diversas humanidades se entrelaçam, se chocam, se rejeitam, se abraçam… Uma combinação de diversos povos, tanto daqueles que já habitavam o território antes mesmo de Portugal existir, quanto das diversas nacionalidades trazidas da África e, mais posteriormente, de grupos humanos vindos de diversas partes do mundo.

Uns mais, outros menos, todos aportaram e ainda aportam contribuições preciosas à nossa multicolorida identidade nacional. No entanto, o fator estruturador de todas essas contribuições foi e continua a ser essencialmente lusófono. Se fôssemos comparar a uma deliciosa sopa bem temperada, esse elemento português seria a água.

Sobre essa proeminência lusófona, assim discorre o nosso Sérgio Buarque de Holanda em alguma parte do seu já clássico Raízes do Brasil: “A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas europeias transportadas ao Novo Mundo. Nem o contato nem a mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir até hoje uma alma comum, a despeito de tudo que nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual da nossa cultura; o resto foi matéria plástica, que se sujeitou mal ou bem a essa forma.”

Na mesma linha, assim argumenta Darcy Ribeiro, no também já clássico, O Povo Brasileiro: “No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi também radical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo-nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si.”

Nessa mesma sintonia, podemos observar que graças aos esforços do povo português para dominar os mares, “a orla branca foi de ilha em continente” clareando, “correndo, até ao fim do mundo”, para que “a terra inteira” pudesse, “de repente, surgir, redonda, do azul profundo” (“O Infante”, Fernando Pessoa, Mensagem) e, daí, fazer surgir um Brasil enigmático e pujante com um povo completamente novo. E nesse sentido, ao contrário de Pessoa, entendo que no Brasil, sim, cumpre-se Portugal.  Entretanto, agora, falta cumprir-se o Brasil.

No estágio atual dessa nossa longa e penosa travessia para nos firmar como um povo realmente novo, nosso desafio maior talvez seja o de encontrar caminhos que rompam definitivamente com os diversos tipos de grilhões sociais que nos apequenam enquanto nação e apaziguar os “trezentos, trezentos e cinquenta” (Mario de Andrade) eus para que um dia, finalmente, venhamos a nos topar conosco, realizando o Brasil que precisa ser realizado.

Há de se reconhecer que, apesar das várias sínteses étnicas e psíquicas já realizadas até aqui, seja por fusão forjada por um algum processo antropofágico ou por adesões empáticas e convenientes, temos ainda um longo caminho a percorrer e muitas partes a incluir, até que venha a brotar com nitidez uma forma brasileira de ser e de estar, no Brasil e no mundo. Uma inconfundível identidade nacional.

Por carregar consigo fragmentos civilizacionais diversos, a alma brasileira tem tudo para consolidar no seu DNA uma tendência à conciliação universal, assumindo assim seu protagonismo em um mundo cheio de profundas tensões. Ou seja, se conseguirmos resolver questões sociais que deveriam nos envergonhar enquanto povo e nos reconciliar com esses diversos fragmentos ancestrais que ainda se digladiam dentro de nós, temos tudo para aportar grandes contribuições para uma vivência colaborativa, tão necessária, entre os diversos agrupamentos humanos que habitam a face da terra.

Por sermos um amalgama de muitos povos, carregamos em nossas raízes praticamente toda humanidade. Por isso mesmo, é essencial que no Brasil cuidemos apropriadamente desses diversos pedaços de raízes que habitam em nosso solo. Assim, sem renunciarmos ao que somos, obteremos um passaporte universal legítimo para afetiva e respeitosamente dialogarmos alegremente com os continuadores da nossa espécies em qualquer parte do mundo, especialmente com toda essa nossa grande parentela latinidade-afro-indígena-ibero-tropical espalhada por esse mundão afora.

Na fase histórica atual, temos ameaças muito mais perigosas dos que esses perigosos vírus. Por isso mesmo, nesse momento o nosso maior desafio é unir a nação e fortalecer o país. Mas essa unidade só será possível se ampliarmos o nosso horizonte. Os bojadores existem para serem superados.

No mundo atual, um povo fraco, dividido e socialmente atrofiado nunca fará um país realmente grande, respeitado, admirado, não dominador e benéfico. Nesse momento precisamos cada vez mais de brasileiros e brasileiras conscientes da necessidade de transcendermos nossas limitações para edificarmos no nosso solo uma humanidade cuidadosa das suas memórias, do seu meio-ambiente, compreensiva, respeitosa, acolhedora e solidária… “Desesperar, jamais”. É a Hora!

Capaz da edição chinesa do livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda
As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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Um comentario para "Uma aula de História do Brasil para meus alunos chineses"

  1. QIAO JIANZHEN disse:

    E muito importante conhecer a base de formatucao deste pais para entender o Brasil hoje em dia. prof. Jose explica profundamente o que e Brasil. Este sera muito importatne tanto para os Brasileiros como para os estrangeiro entender nao so a historia mas tb a cultura, politica, filosofia etc do Brasil.
    Aprendi muito com prof. Jose nestes 10 anos.

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