“Você não estava aqui”: Franquiados e escravos

“O aguçado olhar do cineasta inglês Ken Loach põe o espectador diante do franquiado explorado pelo monopólio dos conglomerados do comércio virtual”

Muitas vezes o forte tema centrado na realidade abre caminho para história e personagens brotados da ficção. Assim leva o espectador a refletir sobre sua vida cotidiana. Neste “Você não estava aqui”, a dupla britânica Ken Loach (17/06/1936)/Paul Laverty (1957) funde história e realismo ficcionalizado para abordar as velozes e radicais mutações em curso nas relações comerciais. Elas estão submetidas aos férreos métodos dos conglomerados que monopolizam o comércio virtual em todo o Planeta, principalmente via TV a cabo. Isto dá a impressão de tudo estar integrado.

O tema central desenvolvido pela dupla Loach/Laverty é a brutal influência do comércio virtual nas relações familiares. É quando o espectador se defronta com o casal Ricky (Kris Hitchen) e Abbie Turner (Debbie Honeywood) e seus dois filhos Lisa Jane(Katie Proctor), de 13 anos  e Seb (Rhy Stone), de 16 anos. Em princípio há harmonia entre eles, os horários não influenciam a relação do casal nem dele com os filhos. O que os trouxe a esta nova situação foi a crise econômica do 2008. Além de perder o imóvel recém adquirido foram obrigados a começar tudo de novo.

Desta vez Loach e Laverty não estão nos calcanhares do Estado a governar o Reino Unido, como em “Eu, Daniel Blake (2017)”. Neste o idoso trabalhador luta para obter a concessão de sua aposentadoria. A burocracia, porém, termina por tirar dele toda a confiança pois prolonga cada vez mais a liberação do que é seu direito. A luta em “Você não estava aqui” é mais complexa e abrange toda a estrutura econômica do Reino Unido. Os conglomerados do comércio virtual se livraram das relações trabalhistas com seus empregados repassando-as para uma terceirizada.

É o que se chama a exploração maximizada

Esta empresa é responsável pela concessão das franquias aos interessados que tenham seu próprio veículo. Seu gerente Harpoon (Alberty Domba)dita as normas segundo às exigências dos conglomerados e da própria terceirizada. O franquiado tem de ficar à sua disposição até que entregue e obtenha a assinatura do cliente na guia de entrega do que foi comprado pelo sistema virtual. Caso não o faça será multado e mudado para uma rota menos lucrativa. Seu ganho diário, pelo que se vê, só é obtido se ele entrar noite adentro e varar a madrugada, pois os itinerários são variados e os locais de entrega ficam muito longe.

É o que se chama a exploração maximizada do trabalhador por ignorar os limites físicos e psicológico do franqueado. Ele tem de se desdobrar, inclusive, para não perder a franquia. Ao menor lapso, Harpoon o adverte para os pontos que está perdendo. E, além disso, sempre lhe diz que “Você não trabalha para nós, você trabalha conosco”. Na verdade, ele quer dizer que o franquiado não é um trabalhador comum, mas um sócio, parceiro, cuja permanência depende de sua produção e pontos ganhos por entregas. Deste modo, termina por se transformar num escravo.

Com estas configurações, a dupla Loach/Laverty justifica sua tendência a expor temas político-sociais em seus filmes (Terra e Liberdade, 2006). Sua denúncia desta vez expõe um dos pilares do neoliberalismo: o difundido empreendedorismo. Turner é, ao mesmo tempo, patrão de si mesmo e empregado do conglomerado ao qual se vinculou ao se tornar seu franqueado, mesmo tendo se vinculado ao terceirizado Harpoon. Pela mistificação do valor do empreendedor como capitalista aprendiz, ele se tornou, sim, dependente de ambos por 24 horas.

Honeywood passa o calor de mãe

O elogiável, além desta construção, é Loach e Laverty criarem dois centros de ação: I – o trabalho de franqueado e a áspera relação de Turner com autoritário Harpoon; II – A equilibrada relação amorosa de Turner com Abbie e paterna com os filhos Liza Jane e Seb. Eles revelam outra faceta do franqueado, sempre atencioso, embora se relacione melhor com a filha. E se entende e deixa a cargo da companheira os cuidados com o filho adolescente. É ela o ponto de equilíbrio do casal. Enquanto tomava conhecimento de suas tarefas e ganhos na franquia tudo se manteve bem.

O que o roteirista Laverty e o diretor Loach pretendem é traçar um paralelo entre o peso do trabalho de franqueado para Turner e a perda, aos poucos de seu contato diário com a família. Embora Abbie seja cuidadora de idosos sua agenda é administrável. Os horários às vezes entram pela noite e tenha de sair às pressas para atender algum deles. Numa de dessas saídas de madrugada, o idoso precisava de sua assistência. Além disso, ela consegue se equilibrar e estar com Liza Jane e Seb para acompanhar os deveres de casa e jantar com eles. Além disso, trata-se de uma questão de autoridade, ainda mais por Turner está fora.

 Este, enfim, é o trabalho do roteirista: criar uma personagem com multiplicidade de comportamentos e empatia com o espectador. Debbie Honeywood passa o calor de mãe quando precisa, de mediadora nos casos de um dos filhos fugir da linha reta e da falta de paciência de Turner se ele passou dos limites com o rebelde Seb. Ela busca compreender as motivações e os desvios de cada um da família. É tocante a sequência em que pede a Turner para se controlar quando falar alto com Sebe. Esta harmonia, contudo, torna-se logo um campo de batalhas perdidas.

 Turner e Harpoon quase se agridem

É onde entra, mais uma vez, a capacidade de Larvert, enquanto roteirista, criar uma trama que configure a real ameaça para fazer este castelo começar a ruir. Não só ele, mas também o diretor de fotografia, Robbie Ryan que, a partir das indicações de Loach, use iluminação e enquadramento para construir os climas em cada um dos centros de ação. É interessante que mantenha sua câmera próxima a Turner e Harpoon, quando eles entram em atrito e quase se agridem violentamente. Mais ainda nas cenas do franqueado posto na parede ao ser maltratado pelo cliente quando lhe pede para escrever na ficha de entrega o número de seu documento. É a forma de Loach não deixar o espectador se desligar do que se desenvolve na tela.

Esta técnica de filmar em variados planos a ação ocorre também nas várias sequências gravadas nos estreitos espaços do apartamento da família Turner. A câmara de Ryan permanece afastada à altura de onde os personagens estão sentados ou em pé. A ideia de raiva e agressão é pontuada pela ação apaziguadora ora Abbie, ora da própria Liza Jane. Isto permite a Loach e Ryan porem o espectador em contato com o irritadiço Sebe. Não só ele como os demais personagens ao se afastarem da câmera.

O mais importante neste “Você não estava aqui” é como a dupla Loach/Laverty faz o espetador atentar para as mudanças de comportamento de Turner. À medida que suas entregas se multiplicam e os problemas se tornam insustentáveis ele se mostra cada vez mais irritado. Já não consegue estar em casa no horário em que possa jantar com a família. A cada instante se vê perturbado ao estar ao lado de Sebe e este não largar o celular. Sua cabeça, na verdade, está na entrega e no horário de trabalho na franquia. Os problemas começam a se multiplicar tanto na relação com Harpoon que o cobra mais entregas e na família.

Relação familiar se tornou uma sucessão de crises

 Têm-se assim dois temas fortes, sendo o mais inquietante o que se dá na distribuidora onde não pode deixar uma lacuna para Harpoon lhe chamar atenção. Quando retorna ao seu apartamento sua paciência se esgotou. Aos poucos o que era relação familiar e cordial e afetuosa tornou-se numa sucessão de crises lançadas às costas de Abbie. Com paciência e o equilíbrio de Abbie e o autocontrole de Liza Jane os atritos ainda eram controlados, ficando Turner afastado de Sebe. A paz para ele não estava na distribuidora terceirizada de Harpoon e muito menos na relação com sua própria família. Daí ele termina por entrar numa espiral de loucura.

 É então que Loach e Laverty mostram ao espectador que a causa dessa quebra de percepção fora causada pelo acúmulo de trabalho como franqueado.  Harpoon exigia dele não só envolvimento total, vinte e quatro horas aceso e grudado ao celular e às entregas, como o advertia e o cobrava pelos atrasos, entre os constantes atritos entre eles. Não bastasse, suprema exploração, acabou multando num valor tão alto que teria de trabalhar dia e noite, deixando a família em segundo plano. Isso num momento em que Sebe mais precisava dele e não havia como fugir ao controle de Harpoon. Não há como não perder o contato com a realidade.

É no desfecho, um dos criativos do cinema nas últimas décadas, que a dupla Loach/Laverty cria a simbologia do filho a implorar para o pai ferido retornar à família. Enquanto isso Turner, o escravo-franqueado, se mostra prisioneiro do que supostamente foi criado pelos ilusionistas neoliberais como a saída para a crise do sistema capitalista. Seria o surgimento em massa das novas e novos senhores/as do capital só com o sopro do empreendedorismo. Pelo contrário, o choro de Turner e suas cicatrizes a dirigir sua van sob a chuva torrencial atestam sua derrocada.

É um jogo de cartas marcadas

O que acabou surgindo, como expõem Loach/Laverty é um segmento de escravos! Investem todo seu capital com a ilusão, como acontece com Turner, de reerguer-se adiante, mas falta-lhes ganhar o suficiente para tanto. Quem lucra afinal são os terceirizados e, principalmente, os conglomerados comerciais.  Harpoon, ainda se vangloria ao dizer: “Estou trabalhando para manter o negócio lucrativo”.  Resume tudo em “sua eficiente gerência”. Na verdade, esconde que, sem os franquiados para o sustentar com seu trabalho de 24 horas, ele será liquidado pelos concorrentes do mercado de franquias. É um jogo com cartas marcadas.

Você não estava aqui. (Sorry We Missed You). Drama. Reino Unido, Bélgica, França. 2020. 100 minutos. Ficha técnica: Edição: Jonathan Morris. Música: George Fenton. Fotografia: Robbie Ryan. Roteiro: Paul Lavarty. Direção: Ken Loach. Elenco: Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Rhys Stone, Katie Proctor, Albert Domba.

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