A morte do papa do neoliberalismo

Ele talvez tenha sido o melhor representante da contradição do liberalismo, que defende a mais ampla liberdade na economia e, ao mesmo tempo, alia-se a ditaduras de direita, como a de Augusto Pinochet, no Chile. Este é o figurino adequado ao economista norte-americano Milton Friedman, morto em São Francisco, Califórnia (EUA), na última quinta feira.



Friedman viu a economia como uma ciência cujo desenvolvimento é impedido pelas lutas sociais e pela exigência, pelos trabalhadores, de uma maior parcela na divisão da produção social. O dinheiro – e o controle de sua emissão – está no centro de sua teoria, por isso mesmo conhecida como “monetarista”. E, por trás disso, os interesses dos donos do dinheiro. Isso fez dele o anti-Keynes por excelência – o britânico John Maynard Keynes, que defendia a intervenção dos governos para manter o nível de investimentos, o crescimento da economia e do emprego, e cujas teses predominaram entre o final da Segunda Grande Guerra e a década de 1970. .



Friedman, ao contrário, preconizava a mais ampla liberdade para o “mercado” (isto é, para o capital); teórico do chamado “Estado Mínimo”, um de seus pressupostos era o de que o melhor governo é aquele que governa menos, cabendo-lhe primordiamente controlar a oferta de dinheiro – além de, é claro, promover a repressão às lutas dos trabalhadores para manter a ordem social, tese que não é explícita mas fica clara em seu apoio a ditaduras fascistas como a de Augusto Pinochet.



O pressuposto teórico deste pensamento conservador era o de que a luta política, refletindo-se na política monetária, é o principal fator de “instabilidade” da economia capitalista ao provocar a mudança da correlação entre o nível de renda nacional e a reserva de dinheiro. A consequência, pensa – sempre de acordo com os interesses dos proprietários – é a reação dos donos de ativos e sua influência sobre o comportamento das bolsas de valores e de mercadorias: a alteração na valorização dos diferentes ativos e do lucro que proporcionam provoca a fuga dos investimentos e a queda no consumo, com resultados negativos para a economia.



Este é o ponto de vista burguês; ele encara a economia como uma atividade – e uma ciência – isolada do conjunto da ação humana (que é social, política, ideológica, etc), e considera a sociedade como um conjunto de produtores individualizados que entram em conflito para maximizar seus lucros, supondo que todos são iguais, não importa se são vendedores de força de trabalho (como os proletários) ou compradores de força de trabalho (como os capitalistas). Daí a popularização conservadora do chamado “capitalismo popular” da era Thatcher, cujo fundamento era esse individualismo radical onde, como dizia Friedman, “não existe almoço grátis”. Isto é, segundo esta máxima norte-americana que vem do século XIX, e que Friedman transformou em título de um livro publicado em 1975, não existe projeto coletivo ou produção social, e cada um deve, à sua maneira e com suas próprias forças, suprir sua subsistência.



Friedman foi por isso o principal teórico das mudanças neoliberais na economia promovidas nas últimas décadas, sendo o guru dos Bancos Centrais e suas políticas ortodoxas, e o principal inspirador ideológico dos ajustes neoliberais promovidos mundo a fora desde a década de 1980, sob inspiração da grande finança internacional corporificada no FMI, no Banco Mundial e em agências de consultoria.



Ele morreu aos 94 anos; no final da vida, coerente com seu ponto de vista radicalmente individualista, defendeu a liberalização do uso de drogas (eu posso querer experimentar e não quero ser considerado criminoso, teria dito) e mesmo a prostituição – expressão das crenças deste teórico do capitalismo cujo pensamento procurou combinar o individualismo típico do pensamento burguês com a ação econômica que, sendo social e coletiva, ele encarou como radicalmente individual e competitiva.