Independência ou morte 2007

Não tendo se confirmado a versão de que militares dariam uma ''resposta'' ao livro da Secretaria de Direitos Humanos sobre os crimes da ditadura, o país pode dedicar a Semana da Pátria que se inicia a reflexões mais atuais: como por exemplo o lugar da nação brasileira, e das nações em geral, neste início de século ''pós-globalizado''.



A única manifestação face ao livro foi uma comedida nota do comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, observando que ''fatos históricos têm diferentes interpretações, dependendo da ótica de seus protagonistas''. O ministro Nelson Jobim afirmou ao presidente Lula, ''na condição de ministro de Estado da Defesa'', que ''as Forças Armadas brasileiras recebem este ato como ato absolutamente natural. Não haverá indivíduo que possa a isto reagir e, se houver, terá resposta.'' Assim, a suposta crise militar foi como a Batalha de Itararé (um episódio da Revolução de 30): a que não houve.



Já a questão nacional emerge para os brasileiro, civis ou militares, como uma das mais candentes da atualidade. Relança algumas das questões centrais colocadas pelo processo da Independência de 1808-1831). Ao mesmo tempo, renova-as e confere-lhes o vigor das questões candentes.



O processo independentista brasileiro, que se convencionou festejar na data do Grito do Ipiranga (7 de setembro de 1822), é na verdade um encadamento conflituoso de longa duração: começa com a transferência da Corte portuguesa em 1808 e vai até, por ironia, a deposição do autor do Grito, convertido em imperador autocrata e pró-luso, obra do levante popular-militar do 7 de Abril de 1831. Faz parte das Guerras de Independência latino-americanas.



Desta sucessão de rupturas e negociações emerge o Brasil enquanto Estado soberano livre do jugo colonial português: uma grande nação e um grande povo em formação; sob outra ótica, um império escravista, uma economia retardatária e condenada a sucumbir ao domínio neocolonial, que ainda perdura.



Vista de 2007, a questão nacional recobra seu vigor porque o mundo vive sob a ameaça de uma superpotência única – os Estados Unidos – que não oculta sua autodesignada vocação imperial. O capitalismo dos monopólios e dos exércitos made in USA considera-se em guerra global sem fronteiras, ocupa países soberanos, à revelia da ONU, e com isso recoloca na ordem do dia a luta das nações e povos pelo direito à autodeterminação.



O projeto estratégico dos EUA para a América Latina (afora ambições militares, que incluiam até a base de Alcântara no Maranhão) era a Alca, Área de Livre Comércio das Américas: naufragou no rastro da onda antineoliberal no continente a partir de 1998. No vazio provocado por esta vitória, os vitoriosos se dão conta de que o jogo de forças do mundo ''pós-globalizado'' é bruto demais para dar alguma chance a projetos isolados de nações de desenvolvimento precário ou mediano, já que o império estadunidense subjuga até as outras metrópoles do mundo, e o próprio sistema multilateral. Nasce daí o movimento de integração latino-americana, que avança, aos trancos e barrancos como tudo que é grande e importante, em especial na América do Sul.



A integração latino-americana assume neste início de século 21 o mesmo sentido libertário que a independência encarnou duzentos anos atrás. A continuidade é explícita, até porque foi Simón Bolívar, o maior comandante e pensador das Guerras de Independência, quem primeiro inoculou nos latino-americanos o projeto da Pátria Grande.



Contra a integração, trabalham os interesses do império estadunidense, mas também uma grande parte das classes dominantes locais. Formada na tradição colonial, colonizada econômica, política, ideológica e culturalmente, ela forma o partido dos órfãos da Alca. Só concebe o processo oposto, de uma ''integração cucaracha'' (como se chama nos EUA os imigrados latino-americanos), com Washington como capital e Miami por paradigma de civilização. Quando fala em patriotismo, é para fomentar um pseudopatriotismo rasteiro, opondo argentinos a uruguaios ou brasileiros a bolivianos, enquanto se acocora face à superpotência do norte. Dúzias de órgãos de comunicação tradicionais do continente agem como porta-vozes dessa mentalidade.



Mas não são os neocolonizados que estão na ofensiva. A integração continental se impôs, e até as suas turbulências são as de um projeto que tem vigor e futuro. Assim como o rompimento com o domínio colonial no início do século 19, ela ao que tudo indica não irá se consumar em um gesto único, desses do agrado da historiografia oficial. Mas é ela que encarna, em 2007, a essência rebelde do brado de Independência ou morte.