O factóide do terceiro mandato

De repente, a imprensa se enche com a suposta ameaça de um terceiro
mandato de Lula. Uma revista põe na capa uma montagem com o presidente
vestido de imperador, com cetro, coroa de louros, trono e manto de
arminho. Um jornalão advoga em editorial que uma reeleição é ótimo mas
duas é um horror.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já rejeitou a hipótese em todos
os tons, mas o factóide continua em pauta. Quando o partido da mídia
elege uma prioridade, não larga o osso e investe unido, como uma
matilha – ou talvez uma alcatéia.

Qual o fogo por trás da fumaceira? O bicho papão Hugo Cávez? Não. Os
venezuelanos, mesmo os da oposição direitista, têm mais o que discutir,
com o país às vésperas de votar a reforma da Constituição para
implantar o “socialismo do século 21”, mesmo porque o atual mandato de
Chávez vai até o longínquo ano de 2013. O projeto de emenda do deputado
Devanir Ribeiro (PT-SP), que nem trata no tema, mas da prerrogativa de
convocar plebiscitos? Não passa de um álibi de ocasião para o ataque da
matilha.

A hipótese de um terceiro mandato em 2010, na verdade, longe de ajudar,
atrapalha o real projeto de Lula. Este vibra com os índices de “bom” e
“ótimo” que alcança nas pesquisas. Deseja fazer seu sucessor mas espera
que este só surja na última hora, para não o ter fungando em seu
cangote. E sobretudo acalenta, como até as pedras sabem, sua volta
triunfal ao Planalto em 2014, quando terá 69 anos de idade.

O único mérito do factóide arrevesado é permitir um reexame, sempre oportuno, do instituto da reeleição.

Há exatos dez anos, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso
enfiou pela goela da nação o seu suposto direito de disputar um segundo
mandato, duas tendências se manifestaram nos oposicionistas que não se
deixaram comprar. Uma contestava o mérito da mudança. A outra admitia e
até acatava o mérito, questionando apenas o método causuístico e
golpista.

Lula estava na última ala. Só depois de se eleger e reeleger percebeu
os males do sistema reeleitoral, passando a advogar a volta do mandato
único, eventualmente com mais de quatro anos.

Os contestadores do mérito recuperavam os argumentos dos fundadores
republicanos. Advertiam para os males do caudilhismo e do personalismo.
Denunciavam que a reeleição amarrava uma bigorna conservadora ao
pescoço da vida política e de sua necessária agenda de mudanças. A
última década mostrou que estavam certos.

Os poderes públicos avançados devem valorizar sobretudo a soberania
popular, combinar a democracia representativa indispensável com a
democracia participativa possível, investir os mandatários da vontade
do povo do papel de cumpridores de missões e não de salvadores da
pátria. Nesta ótica republicana, toda fulanização da política, ainda
que admissível em circunstâncias adversas, é em si uma debilidade. O
desejável é a permanente renovação de mandatos e mandatários, que
aproxima a política do povo, que a submete ao povo, dono original de
todos os poderes. Que o diga Nelson Mandela.

É neste rumo que precisam avançar as instituições da República, assim
que uma reforma política merecedora deste nome se imponha por cima dos
escolhos conservadores em seu caminho. E é salutar que esta seja também
a opinião do presidente da República, cuja ambição de vida várias vezes
confessada é um dia poder voltar a São Bernardo do Campo, olhar nos
olhos dos operários do chão da fábrica e ser  chamado de companheiro.

Quanto à hipotética re-reeleição, evidentemente é tudo que Lula não
precisa. Além de contrariar estes valores, tem o perfeito formato de
uma casca de banana no caminho do presidente que de bobo não tem nada.
Em nome da alegada oportunidade imediata, arriscaria levar ao chão um
projeto estratégico e uma biografia. Que o diga FHC.