Acaba de ser publicado pela primeira vez no Brasil Televisão: tecnologia e forma cultural, do pensador britânico Raymond Williams (Editora Boitempo). O livro é considerado obra clássica para a pesquisa na área da comunicação e, mais do que isso, para a compreensão da dinâmica das sociedades do século XX que pavimentou o terreno para a reconfiguração das mídias no XXI.
Por Rosane Borges*
Publicado 18/11/2016 17:14 | Editado 13/12/2019 03:29
A princípio, pode-se pôr em questão o fato de termos uma publicação sobre TV em plena era dos dispositivos digitais, em que a atenção das pessoas migrou para a tela do computador. Contra essas vozes, é preciso que se diga que a televisão continua atualíssima, posto que converteu-se no suporte que nos enredou, em definitivo, no mundo das telas e das visualidades; ela foi a grande responsável pela hegemonia do audiovisual, já ensaiada com a pintura e o cinema. Até a instauração do audiovisual, as formas de comunicação caminharam do gesto à palavra, dos suportes da mídia primária (corpo) aos suportes de mídia secundária (impressos), que aumentaram a possibilidade de comunicação a distância. A mídia terciária, da qual a televisão é fruto, extingue definitivamente os limites espaciais.
Pelo que foi (o primeiro meio de comunicação eletrônico que aglutinou várias matrizes discursivas – som, imagem e fala), pelo que é (um veículo que constrói e demarca o espaço público) pelo que poderá ser (a TV digital desenha outro patamar de interação com o meio; a transmissão via computador mudou as formas de recepção), a televisão continua nos desafiando. Desde os anos 50 do século passado, não cessam de aparecer estudos empenhados em avaliar o veículo, a partir de várias perspectivas, escolas e disciplinas. As perplexidades, os descontentamentos, os deslumbramentos, os ataques, as defesas, as apologias, o tom catastrófico em que gravitam muitas dessas pesquisas nos fazem notar que a importância da TV extrapola o âmbito de ser um meio eletrônico sincrético. Para além disso, o veículo foi considerado um divisor de águas na constelação dos meios de comunicação.
A forma significante da TV
E é com esse empenho, de demonstrar o que é a TV e o que ela representa, que o livro de Raymond Williams possui validade atemporal, a despeito das diversas e significativas mudanças que o veículo sofreu desde 1974 (ano da publicação do livro), conservando intacta sua força para explicar como um dispositivo tecnológico conseguiu cotidianizar os relatos, “desprovincianizar” o mundo e se instalar, irrevogavelmente, em vários lugares, os mais recônditos, e absorver e homogeneizar as expectativas dispersas.
Ainda que o livro principie pelo tópico da tecnologia, Williams não é refém do determinismo tecnológico. Para ele, resultam contraproducentes estudos aprisionados nos efeitos da televisão. Conseguimos perceber essa concepção alargada do autor no próprio título do livro, onde o subtítulo congrega tecnologia e forma cultural. Williams consegue, dessa forma, traçar um percurso equilibrado que nos leva a compreender a televisão como tecnologia, mas também como produto das condicionantes históricas, resultado da determinação das práticas culturais. Essa dobradinha é uma das virtudes da obra, pois tradicionalmente os estudos sobre TV foram sovinas em pensá-la a partir dessa dupla visada. Ao realçar a forma significante da televisão, renunciada pelas teorias usuais, o pensador britânico tira o véu de questões que foram decisivas para o sucesso televisivo em escala planetária.
Outra virtude do livro é a noção de fluxo, largamente adotada por analistas de TV. Para Raymond Williams, a “televisão não era estruturada por unidades separadas nem dividida entre programas e anúncios publicitários, mas por um fluxo planejado, em que a verdeira série não é a sequência publicada de programas, mas essa sequência transformada pela inclusão de outro tipo de sequência, de modos que essas sequências juntas compõem o fluxo real, a real ‘radiodifusão’.”
Dividido em seis capítulos (“A tecnologia e a sociedade”, “Instituições da tecnologia”, “As formas da televisão”, “Programação: distribuição e fluxo”, “Efeitos da tecnologia e seus usos”, “Tecnologia alternativa, usos alternativos?”), Televisão: tecnologia e forma cultural reafirma o seu papel para a compreensão das mídias digitais a partir da centralidade da TV, prerrogativa que enrique o painel das críticas a um dispositivo que alterou significativamente nossas formas de ser e de estar no mundo.
Somos da era do tele-ver, quase tudo que acontece ao nosso redor, o sentido das coisas e da vida, se efetiva frente ao vídeo (internet, sistemas de vigilância). Essa presença marcante da tela nos nossos afazeres e práticas rotineiras torna possíveis considerações as mais variadas, entre elas a de que o homo sapiens se converteu, na contemporaneidade, em homo videns. Se é possível se fazer tais considerações, é porque vivemos imersos num mundo de imagens pontuado pelos dispositivos do ver e do olhar. É como um grande Olho que a televisão se aloja em nossos lares e nos oportuniza, em seu ritual cotidiano, representações/apresentações do mundo e de nós mesmos nos foto-grafando, donde a frase que se consagrou: “o livro nós escaneamos, a televisão, ela nos escaneia”.
Oportunamente, pode-se objetar que não só a televisão suscita esse ver/olhar à distância, mas todas as máquinas de imagens – da pintura parietal à infografia. Insisto que a televisão é o principal emblema desse amálgama pela sua capilaridade e extensão. Ela capta o espírito do tempo, pois, como lembra o psicanlista Antonio Quinet, a produção do olhar em nossa sociedade atual é privilegiada, porque vivemos o “cúmulo da sociedade escópica”, “onde não há só o império do vídeo e da tele-visão e o imperativo do ‘ser visto’, mas também a utilização da tecnologia científica para fazer existir o olhar, colocando na prática uma razão paranóica, em que todos se sentem vigiados, pois na verdade essa possibilidade está permanentemente presente. Produção do a-mais-de-olhar na sua versão de mal-estar da civilização.” (2004, p. 8).
De fato, a relação do olhar é a condição estruturante comum a todos os gêneros propriamente televisivos, como lembrou Muniz Sodré. É aí que reside o processo de mediação, é pela fascinação que nos tornamos homo videns de uma sociedade que abusivamente se mostra. Esta ligação TV-olhar vem produzindo desde a sua consolidação, no final do século XIX e início do XX, efeitos duráveis em nossa cultura, pois aí pedaços significativos de nossas vidas e trajetos do humano se desenharam de maneira inédita. Pensar o que representam os dispositivos do olhar na contemporaneidade (celulares, tablets, computadores, câmeras de vigilância, entre outros) significa voltar atrás e entender a dinâmica televisiva, ontem e hoje. Sem sombra de dúvidas, o livro Televisão: tecnologia e forma cultural é uma excelente ferramenta para o alcance desse propósito.