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Alexandre Pilati: O mundo coberto de cana

(Para Bel Brunacci)



José Mário Alves Gomes, 47 anos, morreu no dia 21 de outubro de 2005 após cortar 25 toneladas de cana para a Usina Santa Helena, em São Paulo.

foste, no mundo, mineiro
e cortaste cana demais.


 


e teu corpo,
forte árvore morena,
resolveram chamar pela brasileira e estranha alcunha:


 


José.


 


José,
amaste três damas?
quiseste uma valsa?
creste em deus?
pactuaste com o cão?
fizeste um samba?
mataste um patrão?


 


perdão, José: sou grosso, ignorante. por isso, pergunto.
sinto tua falta, como sinto de um irmão.
sinto tua falta.
sei que não sabes disso.
mas quero repetir-te:
sinto tua falta.


 


sei que não me escutas.


 


sinto tua falta
como sentirias, talvez, a falta de um poema
em que teu nome batia, tão comum como a cana que cai
levando consigo o trivial peso do universo.


 


hoje, José, onde estás? será que poderias ouvi-lo?
sei que não.
estás longe, José, e não entendias de estrofes.


 


e (não é curioso?) a tanta cana que cortaste
arde-me os dedos, pesa-me os olhos, perfura-me os rins.


 


que fazer por esse José que já não pode mais?
nem mais podes, José, ouvir “e agora?”


 


dizem que te levou a birola, José.
pra que tanta cana, santa helena?
tanto doce é preciso?


 


mães celestiais,
vale o doce, vale a cachaça, deixar aqui sem José
talvez três rosas,
cinco marias ou vitórias
e quatro meninas sem nome, sem teto e sem terra?


 


pra quê?


 


o amor e a saudade, José,
pesam muito.
pesam e perigam como arma de fogo.


 


tantas coisas no mundo pesam tanto:
montanhas em minas, o olhar do padrasto
as traquinagens de moleque,
a boca fúnebre da noite.


 


mas nada se compara a
25 toneladas de cana.


 


25 toneladas de cana
pesam mais que 500 anos.


 


25 toneladas de cana
pesam oito mil quilômetros.


 


25 toneladas de cana
são compridas como a mentira.


 


25 toneladas de cana
significam quantos homens, José?


 


teu peso no mundo era tão ralo.
quanto pesavas nesta cruel balança?
não incomodavas. eras manso como um peixe manso.
não mudarias a rota do planeta terra.


 


eras leve; foste breve.
quanto pesavas no mundo, José?


 


perdão, José. já não precisas de aritmética.
as ciências são frágeis, um dia entenderias.
de nada vale a lei da gravidade, num mundo tão desequilibrado.
nem mesmo a medicina da usina dá conta de 25 toneladas de cana.


 


a poesia, José, que cabe em meu suburbano coração
pesa só uma tonelada
e nem assim adoça o mundo.


 


será que me entendes, José?


 


todos os santos, levem José,
que morreu de excesso de trabalho.
levem José, exausto da birola,
que ele era pequeno demais para 25 toneladas.


 


e levaram teu corpo, José, para a usina
e os doutores de branco tentaram te salvar.


 


José, que música ouviste,
enquanto eras carregado
ainda vivo
antes de fechares
os olhos severinos?


 


que música, José?
que música era aquela,
tão cheia de violinos?


 


o bruto peito teu não resistiu e sonhou com outros campos.
quiçá com o mar. quem sabe até com minas.
lugares onde não seria preciso foice,
nem aguardente pra agüentar o coice.
nem cana para adoçar o doce,
nem veias pra sentir açoite.


 


deu um instante e a terra parou, José.
e a terra parou para ti.
e tua vida prestes se queimava:
cigarro de palha, palavra no vento.
tua vida, José, tu a perdeste
nos dentes do trabalho.


 


morreste de trabalho.
morreste com calos imensos nas secas mãos.
morreste como morre uma pedra:
sorrindo duramente para todo o sempre.
morreste de trabalho. e nem escravo eras.


 


estás hoje, José, nos jornais, que dizem apenas “não resistiu”.
morreste com dor, José, sem ouvir os gritos dos companheiros,
sem ouvir o nosso longínquo sussurro:”e agora?”.


 


não se sabe de tua mulher, de teus filhos, de teus medos,
dos sorrisos que guardaste, da comida que preferias.
e, principalmente, ignora-se tudo
de teu couro cabeludo,
que secretava girassóis,
e teu alado fígado,
que produzia margaridas…


 


não andaste de avião, não leste romances que falam de ti,
não pregaste ninguém na cruz.
tua foice colhia cana; nunca cortou cabeças.


 


quanto pesariam, José, 25 toneladas de cabeças
arremessadas no espaço por tua foice?


 


José, morreste sem nos responder:
quanto pesam toneladas de mundo
nas pequenas mãos de um brasileiro?


 


e aí estás: brasileiramente estendido no chão
(eu não te vi, que não houve foto no jornal)
 – a máquina de sonhos que eras parou,
sem travar as metas da usina. –


 


25 toneladas de cana, José.
era muito, meu caro.
eras barato, eras feito de brisa.
leve José,
como não entendeste?


 


que deu em ti? não eras formiga:
25 toneladas de cana
eram demais.
talvez ninguém soubesse disso,
nem tu mesmo, José.


 


e eu, José, que sei eu de ti?
eu que sou tão pouco.
que sabias de mim,
eu que sou tão mouco?


 


eu, com este miúdo sorriso de rato,
quem sou para interrogar, José?


 


eu que não sei de nada,
que não te deixo descansar,
continuo a perguntar:


 


por que me doem tanto
7 quilos de tristeza,
se há vidas que sobem ao céu
levando, como pluma,
mais de 25 toneladas de doce cana
de açúcar brasileira?


 


descansa, José.
descansa, meu avesso irmão.
não me respondas.
descansa, José.
há muita cana pra cortar.
descansa.
o mundo está coberto de cana.