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José Varella: Cabanagem hoje

A classe operária promove a democracia pelas bases, nos quatro cantos do mundo, por uma necessidade vital de desenvolvimento humano. Por isto o progresso social é um movimento revolucionário profundo, contínuo e lento como as forças da natureza donde a hu

Os primórdios da revolução popular amazônica, chamada a Cabanagem; ocorreram precocemente. No dia 7 de janeiro de 1619, o cacique Guaimiaba (Cabelo de Velha) levantou os tupinambás do Pará contra a pérfida “União” Ibérica exercida na região norte pelos portugueses de Pernambuco. Havia três anos apenas que o grande povo tupi concordara em receber pacificamente em seus domínios portugueses apresentados pelos franceses despejados do Maranhão.


 
O gaulês Charles des Vaux, camarada dos tupinambás, viera como piloto de Castelo Branco a mando de La Ravardière após a capitulação deste e acordo de trégua com Alexandre de Moura. Com aparente entendimento entre franceses e portugueses, os índios da aldeia de Tenoné deram notícias da terra e ajudaram o fundador de Feliz Lusitânia (Grão Pará) a escolher sítio adequado a levantar o forte do Presépio. Este lugar foi a ponta alta na boca do igarapé do Piry, que hoje é a doca do Ver o Peso. Simples paliçada de taipa a modo indígena, o “forte” construído em parceria de tupis e europeus, servindo de berço à cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará: parto amazônico, ocorrido a 12 de janeiro de 1616, há 393 anos.



É certo que a “França Equinocial” (Maranhão), parida do compadrio de corsários e tupis, havia o problema congênito da matança de protestantes pelos católicos na fatídica noite de São Bartolomeu quando o Diabo correu solto pelas ruas de Paris. O calvinista Daniel de La Touche, senhor de La Ravardière; teve que se curvar à católica Maria de Médicis para instalar a colônia. O preço foi a despreparada missão dos frades capuchinhos. Estes ignorantes da religião dos tupinambás pretenderam converter o bom selvagem ao catolicismo, chegaram a levar alguns destes valentes antropófagos a França para ser batizados pelo rei.
 


Os pajés tupis, naturalmente, eram apóstolos da mítica “Terra sem Mal” cuja demanda de infinitos males levava a guerra aos tapuias achados no caminho para o Araquiçaua (lugar onde Guaracy, o sol, mãe dos viventes; ata rede para dormir). Com assombro, os padres constataram o prodígio dos oráculos indígenas e o poder que tinham sobre a massa rude: por certo,  caraíbas ou pajés açus eram concorrentes dos catequistas.



Qual, entretanto, o fundamento do temor dos índios em relação a seus profetas? Não muito diferentes das mais religiões do velho mundo. Os profetas do novo mundo tinham contatos com o sobrenatural, no Maranhão, diz o frade Claude Abbeville; um espírito chamado Jurupari (“boca tapada”, expressão do segredo mortal que ele impunha a seus iniciados) era ninguém menos que o Diabo europeu. Começou assim o combate entre Deus e o Diabo na terra dos tapuias, para grande desgosto dos tupinambás. Sorte dos portugueses que entre eles o astuto cristão novo Martim Soares Moreno fosse cunhado dos tupinambás do Ceará.



Mas, se os franceses diabolizaram Jurupari fracassaram a camaradagem de Charles des Vaux com os tupinambás; não demorou que o cristão novo Simão Estácio da Silveira viesse com seus pobres de Portugal perturbar o casamento do patrício Soares Moreno com a índia Paraguassu. Querendo logo subir o rio com olhos na prata do Peru, Simão da Silveira escreveu um panfleto aos pobre de Portugal dizendo-lhes que o Maranhão era um paraíso.



Os pobres enganados do inferno verde cedo viram-se no mato sem cachorro. No desespero da irremediável pobreza voltaram-se para as terras dos índios e a escravidão dos mesmos como tábua de salvação. É claro que os tupinambás, a exemplo de nativos da antiga Canaã, não estavam de acordo que o Maranhão fosse Terra da Promissão dos pobres forasteiros. O resultado foi a matança de uma centenada de pobres enganados de Simão Estácio da Silveira, progenitor dos aliciadores de mão de obra escrava da devastação da Amazônia em nossos dias.



A reação dos índios foi, então, semente da Cabanagem geral. Quando Guaimiaba cometeu o assalto suicida ao Presépio, atual forte do Castelo; para vingar a escravidão da sua gente por falsos amigos e aliados. Ele morreu em luta e ressuscitou nas crenças amazônicas e na cultura popular, onde o tremendão tupinambá é uma metáfora de altos decibéis eletrônicos nas noitadas da periferia de Belém.



Desde então, o conflito entre colonizadores e colonizados na Amazônia foi crescendo, com fluxos e refluxos, até o segundo grande estouro, ápice nervoso do choque colonial, a 7 de janeiro de 1835. Quando descendentes dos “Ajuricabas” e “Nheengaíbas” ajudados por filhos da Guiné e de Angola não suportaram mais humilhações de séculos de escravidão. Como se, subitamente, os cabanos tivessem entrando em furioso transe, rompendo violentamente as amarras para vingar a perseguição e morte do líder  cônego Batista Campos.



Agora a terceira onda da Cabanagem transcorre em patamar histórico superior da luta para inclusão social e plena Cidadania. A via pacífica da democracia participativa é, portanto, caminho de libertação das populações  das palafitas. Combatentes amazônidas que Basílio de Magalhães comparou aos rebeldes das cabanas de Alagoas, donde veio o nome de “cabanada” ou “cabanagem” no Pará. A Carta Magna de 1988, depois de outro período de retrocesso, estabeleceu roteiro para emancipação do povão, que hoje precisa acelerar a marcha como nunca antes neste pais. Para o bem de gregos e troianos.