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Lucia Ana: Bilros e rendas

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Maria Hygina, esse era o nome de minha avó materna. Lembro da brancura de seus cabelos. Era uma mulher delicada, de corpo franzino, gestos suaves e voz doce. A sua fala era carinho puro, chamava o nome de todos os netos no diminutivo: Ceiçãozinha, Lucinha, Solanginha, Gizêldinha, Francisquinho, Pedrinho e Marquinhos.
                 


 


Vovó quase não falava e sua voz era sempre baixinha. Não lembro de gargalhas. Quando abraçava os netos esboçava um sorriso tímido, ocultando seus sentimentos.
                 


 


Passava a maior parte do tempo na cozinha da casa grande. Ali ela trabalhava. A almofada era sua ferramenta de trabalho . Era linda! Parecia uma peça de decoração. Posicionada no cantinho, em cima de uma banqueta, a almofada coberta ao meio por um papelão onde  espinhos de mandacaru faziam as vezes de alfinetes, exibia os fios de linha  branca que caiam e se enrolavam nas peças de madeira que tinha nas extremidades a fruta do tucum. Eram os bilros. Isso mesmo, bilros que atendendo aos comandos das mãos  mágicas  de Dona Maria Hygina produziam som . Aquele barulinho era música para nossos ouvidos. E enquanto eles cantavam  a linha se transformava em renda. Ela ficava horas naquele trabalho que parecia uma brincadeira. Suas mãos eram rápidas. Seus movimentos eram calculados. A sua concentração era absoluta. O barulho intenso da cozinha em nada atrapalhava a sua produção.
                  


 


A vida da fazenda era muito dura, difícil e até grosseira. O trabalho ali estava ligado ao gado, a lavoura e ao carnaubal . Não era fácil no meio do sertão, da seca e de todas as adversidades encontrar um espaço para a arte. Pois Dona Maria Hygina encontrou , ela teceu todas as suas dores e  teceu  todos os seus medos.
                  


 


Rendas para toalhas, rendas para lençois, rendas para vestidos, rendas para camisolas e rendas e rendas  brotavam daquela almofada. Era vovó que fazia do seu ofício as primorosas peças de linha do Barro Vermelho.
                 


 


Dona Maria Hygina ia urdindo a vida em sua almofada. Ia entrelaçando os problemas. Ia cirgindo os ferimentos. O seu silêncio e a sua solidão transformaram -se em tela de beleza. Cada nó era um suspiro. Cada laçada era um gemido. Cada fio que passava era uma esperança. Da sua almofada  não sairam apenas rendas. Sairam pontos de luz.
                 


 


E foi assim que vovó  bordou alegrias, conquistas e sonhos. E trançou a sua vida naquela almofada – símbolo de alvíssaras e resistência.
                 


 


Os anos passaram… e descobri que aquela delicadeza e aparente fragilidade, eram  o abrigo  da coragem de uma sertaneja, que reservadamente, construiu um futuro, superando os obstáculos do dia-a-dia com o primor do trabalho e a brandura da paciência.
                 


 


Uma vida tecida, silenciosamente, com os fios da sabedoria.
                 


 


E hoje, quando lembro da vovó, vejo bilros e rendas parceiros de sua vida.