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O cosmo segundo Calvino

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A reedição das Cosmicômicas traz de volta o melhor de um dos grandes escritores do século 20.


 


Ele fez o primeiro sinal do mundo no corpo de uma estrela. Também já foi um dinossauro desabusado. Ele viu a lua gotejar seu corpo brilhante sobre a terra. Viveu a experiência de uma célula apaixonada por si mesma dividindo-se em duas. Viu a Terra constituir-se a partir de um amontoado de meteoritos e cacarecos. Foi perseguido pelo seu assassino no trânsito caótico de uma grande cidade. Já foi um molusco que resmunga de dentro de uma concha, dizendo que nasceu para ensinar os homens a contarem o tempo. Esse, que viveu todas as eras desde o Big Bang, é Qfwfq, um curioso personagem de nome impronunciável criado por Italo Calvino para protagonizar suas cosmicômicas, textos que fundem ciência, literatura e fantasia, desilusão e humor.


 


O recente lançamento no Brasil da reunião desses textos (dez anos depois da edição italiana) é um acontecimento digno de comemoração. Com Todas as cosmicômicas (Cia das Letras, 2007), a obra de Calvino em português ganha e significativa amplidão. O intrigante conjunto de textos (com ótima tradução de Ivo Barroso e Roberta Barni, que preserva boa parte da beleza das frases de Calvino em italiano) foi recolhido em quatro livros. Os dois primeiros, As cosmicômicas (1965) e T=0 (1967), são complementares entre si e seguem uma certa cronologia na apresentação das peripécias do protagonista Qfwfq. Os dois últimos volumes trazem uma evolução bastante clara do projeto ‘cosmicômico’ do autor e ainda não haviam sido publicados em português. São eles La memoria  del mondo e altre storie cosmicomiche (1968) e Cosmicomiche vecchie e nuove (1984).


 


Calvino escreveu uma das obras literárias mais significativas do século 20. A vasta produção, que fez do escritor um clássico contemporâneo, abrange desde o neo-realismo de A trilha dos ninhos de aranha (1947) até a reelaboração de fábulas tradicionais italianas, o exercício da literatura fantástica e o experimentalismo do grupo Oulipo. As cosmicômicas, contudo, compõem um gênero peculiar, multifacetado e tenso, que agrupa diferentes tons, modos e tradições narrativas. São textos que resistem à classificação e convidam a leituras diversas.


 


O formato textual das cosmicômicas é quase sempre o mesmo. Há uma espécie de preâmbulo científico ou pseudo-científico, que logo a seguir é ferido pela palavra irônica, arrogante e incisiva de Qfwfq, personagem que aparece como testemunha humana da fria enunciação científica inicial. Verifica-se, assim, uma disjunção entre a epígrafe e o texto que gera a graça e o sabor da narrativa. No texto “Os dinossauros”, o golpe das palavras de Qfwfq é bruto e revelador disso. Após a citação científica a respeito do desaparecimento completo dos dinossauros, o nervoso e egocêntrico personagem anuncia: “Todos menos eu, esclareceu Qfwfq, porque fui também, em certo período, dinossauro – digamos, durante uns cinqüenta milhões de anos; e não me arrependo: ser dinossauro naquela época era ter a consciência de ser justo, fazendo-se respeitar.”


 


A cosmicômica, dessa forma, configura-se como um tipo ímpar de narrativa de ficção científica. Ímpar porque consiste num sistema de gêneros e tipos discursivos díspares arquitetado por Calvino, ao qual se poderia chamar de ‘cosmo literário’. Nas primeiras cosmicômicas, além do discurso científico e da empáfia do narrador em primeira pessoa, há um timbre de fábula envolvendo a narrativa. Isso dá leveza e humor aos textos. Nas cosmicômicas do segundo livro, T=0, afloram ecos de discursos de natureza filosófica e da literatura de reflexão psicológica e lingüística que caracterizou grande parte dos romances do século 20. Dessa forma, o narrador fica mais melancólico e a negatividade assume as rédeas do enredo. Aqui parece estar o melhor resultado desse tipo especial de narrativa. Por fim, as últimas cosmicômicas são temperadas com a lógica da literatura do absurdo (por vezes à Kafka) e alguns matizes de literatura fantástica. Tudo isso, entretanto, é feito sob a assombração gênero que vivia talvez o seu auge nos anos 60, a ficção científica.


 


Entretanto, como já se disse é um tipo muito especial de ficção científica aquele que Calvino equaciona nas cosmicômicas. No notável ensaio sobre a ficção científica “The imagination of Disaster”, Susan Sontag vê nesse gênero a expressão das mais profundas angústias com relação à existência contemporânea, marcada pela perspectiva de aniquilação mundial. Como as cosmicômicas de Calvino são textos que nascem exatamente no período da Guerra Fria, quando o medo da hecatombe era inoculado estrategicamente e em grande escala no mundo capitalista, um pouco dessa angústia referida por Sontag está lá retratada. Mas de forma fantasmagórica, como uma sombra negativa. A narrativa está também eivada de elementos típicos da literatura de Calvino, de alta tensão questionadora, que tornam as cosmicômicas menos ficção científica (se se considerar o esquema tradicional do gênero), conferindo-lhe mais verdade literária.


 


É provável que a chave para toda a obra esteja no texto “Os cristais”. Nele há saudade de um certo mundo anterior à neurose da hecatombe e da lógica capitalista. Desse mundo original, o mundo do cosmo (ordem) perdido, só nos chegam fragmentos. O apurado narrador literário que é Qfwfq e o cientista genérico que está internalizado no tom geral da narrativa tentam utilizar esses fragmentos para reconstruir algo que, todavia, não está mais disponível. Tudo, malgrado o imenso e minucioso conhecimento científico a respeito do mundo parece inútil para resolver os problemas humanos. Continuamos falando como Qfwfq e sabemos bem o lugar histórico e social dessa voz. Ela vem de nós mesmos, do mundo da “Guerra nas estrelas”, como nossos medos, limites, solidão e egoísmo. Diz um angustiado Qfwf em “Os cristais”: “Estava errado, como sempre: o diamante foi possuído, não por nós. Quando passo diante da Tiffany’s, paro e fico olhando as vitrines, contemplo os diamantes prisioneiros, lascas de nosso reino perdido.”


 


Surge, pois, um descompasso que é o motor inquietante (mais do que cômico) das cosmicômicas. O cosmo de Calvino é talhado na brecha entre as ilusões e as certezas que nos formam como humanos ao mesmo tempo que nos entregam ao nada. Não há lastro seguro nem no tom científico que encaminha verdades tão amplas que parecem ilusão, nem no discurso individual e individualista de Qfwfq, que de tão mesquinho e minucioso parece verdadeiro, embora seja sintoma de uma ilusão (a subjetividade burguesa). Nas palavras do próprio Qfwfq, a existência do ser problematizada na obra de Calvino é “aquele tipo de existência que se você existe existe, e se não existe você pode começar a fazer de conta que existe e depois ver o que acontece.”


 


Ingredientes fragmentários de discursos, assim, combinam-se gerando um texto indócil e às vezes difícil, mas sempre belo e historicamente revelador. Nas malhas da fantasia, do devaneio subjetivo e dos esquemas da ficção científica, Calvino soube injetar, como mestre das letras, o concreto de nossa condição humana e de nosso destino, insolúvel mesmo que a bomba atômica estourasse a vida, a ciência e a literatura. Sabemos que nada disso foi pelos ares: sobrevivemos à Guerra Fria e pouco nos resta além das cosmicômicas para enxergar verdadeiramente a insolubilidade histórica do olhar científico sobre o planeta, cada vez mais doente. Os devaneios pseudocientíficos de Qfwfq preenchem com literatura o vazio que vai na alma de cada um que vive em nossa era, ela mesma constituída de ilusões e devaneios.