Thiago de Mello, 95: a poesia a serviço da vida, do homem e da utopia

Thiago de Mello é um dos grandes poetas engajados na luta revolucionária, como foi Marti, Dario, Maiakóvski, Neruda e Guillén

Nosso primeiro contato foi em 1981 por telefone. Falamos por várias vezes para acertarmos sua vinda a Salvador, juntamente com Sergio Ricardo, para um Recital de Poemas. Infelizmente, não fiz a produção do show, mas aconteceu numa outra ocasião. Fui reencontrá-lo em setembro de 1986, quando participava em Campina Grande (PB) na condição de jornalista enviado pela Tribuna da Bahia, do 7º Congresso Brasileiro de Teoria e Crítica Literária e do 5º Seminário Internacional de Literatura, onde fizemos parte da Mesa de Abertura dos trabalhos.

Um mês depois após regressar de Canudos, onde participei da 3ª Missa, liguei para Barreirinha, mas ele se encontrava no Rio de Janeiro. Era para dizer-lhe que havia sido apresentada pelo dançarino Negrizum uma coreografia sobre os Estatutos do Homem, acompanhado por atabaques que assustou e intrigou os caboclos do sertão canudense. Ele ficou feliz com a notícia e quis saber detalhes sobre a coreografia, se havia sido gravado, a receptividade do público, essas coisas.

Estivemos juntos mais uma vez em 12 outubro de 1998 durante um Concerto-Recital (duplas de poetas: Antônio Brasileiro e Thiago de Mello), realizado no Jardim da Ordem Terceira de São Francisco, no Centro Histórico de Salvador, através do projeto “Música Erudita e Poesia Nossa de todo o Dia”, promovido pela Secretaria da Cultura e Turismo e pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), idealizado pelo poeta Geraldo Maia, incansável agitador cultural de Salvador e um dos fundadores do Movimento Poetas na Praça.

Após a palestra conversamos sobre poesia, principalmente sobre os novos poetas baianos e os projetos em andamentos. Ele perguntou por Rose Foly, ex-companheira do poeta baiano Fernando Batinga – ambos se tornaram amigos no Chile, de Allende –, dei-lhe as melhores notícias e na despedida autografou um exemplar da nova edição dos Estatutos do Homem. E de lá pra cá trocamos algumas correspondência e livros.

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Thiago de Melo, poeta cantador e andarilho, caboclo amazonense, nascido em Barreirinha, hoje com 86 anos e 61 de criação poética, continua sendo cidadão do mundo e companheiro do mudo que não imita seu canto e que transmite mensagem de amor e fé no homem. Thiago de Mello avançou os limites do rumo para o dia do verdadeiro homem, da re-humanização de todo ser, mostrando-nos a sede de paz, justiça, liberdade e vitoria para os povos.

De uma Vez por Todas reúne a sua produção poética até 1996, um mostruário da sua poesia social, um poeta renovado em sua convicção de que: “cada um de nós, na sua vida cotidiana, na maneira de viver e de conviver com os outros, parte, consciente ou inconscientemente, para uma opção entre o apocalipse e a utopia”. Aqui estão presentes todas as linhas marcantes de sua poesia: lirismo, a sensibilidade humana, a alegria de viver, a luta contra a opressão, o amor constante à Amazona, seu berço. De uma Vez por Todas (1951-1996), apresentação de Carlos Heitor Cony, ilustrações de Aldemir Martins é hoje, livro de cabeceira, que não poderá faltar neste novo ano, nesta nova ordem, neste novo dia, que o homem precisa encontrar.

É difícil afirmar qualquer coisa em torno de sua obra, sem incorrer nas delimitações temporais, pois uma ideia básica percorre toda sua obra. É um dos maiores poetas do Brasil contemporâneo e – por que não dizer? – um dos maiores da América Latina, com segurança, objetividade e linguagem seca característica própria de sua poesia, pois se apoia quase incondicionalmente no social e no amor do homem, assumindo assim decisivo posicionamento. Com seu protesto vigoroso à exploração do homem, ao poeta Thiago de Mello coube a tarefa de traduzir uma poesia forte e vigorosa com exaltado patriotismo, contra o ódio e a tirania onde o poeta eleva seu grito de revolta.

Sua obra se valoriza mais ainda, a partir do caráter das inquietações, vacilações, incertezas, dúvidas e ansiedade da sociedade brasileira, vítima de um golpe militar eu ficaria aniquilada por vários anos. E esta angústia retorna com total frequência em sua obra, como um sopro de profunda descarga perante a desilusão existencial do poeta, que é constituída por um longo período marcadamente aflorado por preocupações sociais. Thiago de Mello tenta de todas as formas conciliar o sofrimento humano sobre os desafios e mistérios da vida, envolvendo essas incertezas sob as ordens filosóficas e a praxe marxista questionando porque os homens reinam neste mundo com sofrimento, ganância, dor e injustiça.

A concepção fundamental do homem na sua obra é idealizada pelo sublime e sublimado poder do mesmo, imprescindível ideal. Continuando o poeta com o mesmo desejo pelo homem, sempre inatingível continua a contar seu esplendor por todos os sentidos do existente. Pois, ele merece constante exaltação e constitui a fonte maior e permanente de inspiração, sustentado pela sede inconfundível do poeta. Sua obra poderia merecer verticais estudos monográficos, devido a imaginações exuberantes, criadora de todo um universo coletivo, sem limites buscando na criação e atmosfera lírica-social, condições de realizar seu amor e seus desejos.

Thiago quebra esse gelo e joga as primeiras pedras nas águas paradas da poesia brasileira e vai sedimentar sua poesia com os traços que a distinguem como a mais singular, singela e social, ou pelo preenchimento das aderências emocionais, pela fuga mais profunda ao sentimento em direção à idealidade e assume postura influenciada pelo contato forte do materialismo dialético e sua poesia definiu-se no plano dos temas e das formas, constituindo-se num dos polos articuladores do seu fazer poético.

O vate amazonense Thiago Amadeu de Mello nasceu a 30 de março de 1926, na pequena cidade de Barreirinha, à margem direita do Paraná do Ramos, braço mais comprido do Rio Amazonas. Ainda criança, mudou-se para Manaus, onde iniciou os primeiros estudos no Grupo Escolar Barão do Rio Branco e segundo grau no então Ginásio Pedro II. Tendo concluído os estudos preparatórios, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade Nacional de Medicina cursando até o quarto ano. Mas logo descobriu que seu destino era ser poeta, entregando por inteiro a arte poética, optando pela utopia, passando a lutar incessantemente em defesa de um mundo pacífico, pela construção de uma sociedade humana e solidária.

Após o término da 2ª Guerra Mundial, início da era atômica com as explosões de Hiroshima e Nagasaki, o mundo acredita numa paz duradoura, cria-se a Organização das Nações Unidas (ONU), seguida pela Declaração dos Direitos do Homem. Logo depois tem inicia a Guerra Fria, período marcado pela hostilidade e permanente tensão política. No Brasil, Getúlio Vargas foi deposto e o País volta a respirar democracia, partidos são legalizados sem exceção e uma Constituição (1946) estabeleceu novo pacto social. A euforia democrática durou pouco, abrem-se um novo tempo de perseguições políticas, ilegalidades, exílios.

A preocupação com o resgate da forma poética fez com que o projeto literário da geração de 1945 fosse definido pela construção de uma nova objetividade em relação à criação literária, mantendo a tradição da poesia discursiva. Após 1950, os poetas do primeiro momento do pós-guerra dividiram-se, parindo para experimentações poéticas diferentes. Thiago de Mello encaminha-se para uma poesia participante e publica, aos 25 anos, seu livro de estreia, Silêncio e Palavra (1951), coletânea que reunia 38 poemas, lançando por uma pequena editora, Hipocampo, irrompendo vigorosamente no cenário cultural brasileiro, onde logo é acolhido pela crítica de Álvaro Lins, Tristão de Ataíde, Manuel Bandeira, Sergio Milliet e José Lins do Rego.

Silêncio e Palavra e sua segunda publicação, Narciso Cego (1952), são livros em que vamos encontrar um poeta pessoal e lírico, voltando-se depois para temas políticos e sociais. Entre 1959 e 1964 dirigiu o departamento Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro e foi adito cultural do Itamaraty. Exilou-se no Chile por motivos políticos, após o golpe militar de 1964 no Brasil. No Chile tornou-se amigo do poeta irmão Pablo Neruda. Durante o governo socialista de Salvador Allende, dirigiu o Departamento de Comunicação Visual no Instituto da Reforma Agrária.

Sobre Vento Geral (Poesia 1951-1960), Livraria José Olympio Editora, reeditado em 1981 pela Editora Civilização Brasileira, reúne 12 livros de poemas. “Entre os primeiros e os últimos livros de Thiago de Mello há um progresso evidente na expressão literária: o verso ganhou plasticidade e elegância, a frase poética ganhou melodia e eloquência, o texto deixou de ser laboriosamente construído à custa de torneios complicados e de um falso hermetismo para adquirir aquela espontaneidade sem a qual, do ponto de vista literário, não há poesia”. É assim que Wilson Martins se expressa sobre o livro de Thiago de Mello, em artigo publicado n’O Estado de S. Paulo na edição de 2 de julho de 1960.

Faz Escuro Mas Eu Canto (1965), onde o crítico Otto Maria Carpeaux se faz presente mais uma vez na vida de Thiago de Mello, homenageando um poeta que canta o amanhecer: “Thiago de Mello é um homem aberto aos anseios coletivos do povo brasileiro. É e sempre será uma voz que canta, por mais impenetrável que pareça a escuridão da hora que atravessamos. Há anos irrompeu ele como uma força elementar na paisagem idílica da literatura brasileira”.

Seu livro seguinte, A Canção do Amor Armado (1966), enriquecida com os textos de Otto Maria Carpeaux e Alceu Amoroso Lima, reúne poemas de 1963 a 1966, produzidos no Rio de Janeiro, Santiago e Punta del Este:

“o tempo do inimigo se acrescenta

de tão turvo poder, que está marcando

– o tempo do inimigo está maçando

A hora da rebeldia em nosso amor.”

Após vários anos sem publicar, Thiago de Mello retorna brilhantemente. Sem dúvida, vamos encontrar em Poesia Comprometida com a Minha e a Tua Vida (1975), um poeta em alta estação, em pleno florescimento poético, conforme Ênio Silveira, amigo e seu editor, escreveu nas abas chamando à atenção para os massacres no Vietnã ou no Chile. É sempre preciso falar da vida e da obra desde caboclo amazonense:

“A mesma sede de paz, justiça e liberdade que armou para a vitória um dos povos mais desvalidos e pobres do sudeste asiático sobre a maior potência militar que a história já conheceu, pode armar a cada um de nós para a luta pelo direito de viver com dignidade.”

Vejamos:

Escrevo esta canção porque é preciso

Se não escrevo, falho com o pacto

Que tenho abertamente com a vida.

E é preciso fazer alguma coisa

Para ajudar o homem.

Mas agora.

Apesar do próprio homem, ainda é tempo.

É tempo.

Thiago traduz uma contestação da visão do mundo moderno, e em momento algum emergiu como alternativa, tal à persistência com que se manifesta um protesto não só contra a assepsia e o refinamento que se encontrava a poesia brasileira, mas também, antecipando as radicais elaborações criadoras, na busca de expressividade que direcionou sua poesia.

No entanto, não é Thiago de Mello o poeta brasileiro que mais motiva a crítica literária, por isso não aceita pacificamente esta conclusão, mas não deixa de reconhecer a grande importância que teve sua obra nessas seis décadas de obscuridade. E esta geração teve muitas influências, confessando uma identificação que não é apenas literária, mas também existencial e por este aspecto verifica-se que Thiago de Mello foi uma presença marcante entre as vítimas de 1964.

Estes confessaram sua predileção, apreenderam a transportar esta vivência própria à fertilização dos objetos de um momento político, aderindo ao mesmo, dando o passo a que apontava sua obra poética. Pois continuam firmes, fiéis e verdadeiros, que seus ensinamentos continuem a inspirar as novas gerações, para a participação mútua nos processos de renovação e conquista de novos caminhos, de novas lutas de novas auroras.

O nosso grande poeta, desde suas primeiras produções poéticas, permanentes e marcantes, traz o senso da composição, ou seja, o cuidado externo em suma e objetividade, nascida nele antes do escritor. Como uma semente que só então germinava e destruía sem piedade todas as estruturas dos modelos, pois sua obra ia constituir a estrutura mais sólida da sua época, como indicador de novos rumos. Por isso que sobreviverá para sempre, contendo o máximo da emoção, confiança e grandeza, com o impulso de liberdade e de criação autônoma tão característica do poeta.

Este panorama mostra mais um pouco do poeta, em incessante inquietação e criação, a fim de situar no tempo e de estabelecer relações de um determinado período de nossa literatura. Thiago rebela-se com a inovação constatação de existir com nacionalidade, restaurando os valores vitais pretéritos, representando o culto da originalidade e da liberdade criadora. Seu exercício poético de base marcadamente expressiva reflete a visão dialética do mundo, por isso sua obra, como já se disse, muitas vezes, é tão variada em seus valores e intenções, que o leitor menos avisado, sem uma leitura global da obra, saber perfeitamente por onde começar o julgamento.

Como todo poeta de grande fôlego, Thiago de Mello é um renovador mais independente que ultrapassa as barreiras da subjetividade, com as forças geradoras do ser e do universo. Exprimindo-se despido, servindo de estímulo para alimentar a poesia e simultaneamente enveredar pelo idealismo, que se produz ao longo de sua história literária. Portanto, a obra do poeta amazonense nos fornece uma visão harmônica do universo, a cada dia, seduzida pela realidade viva, transformando em produtos antagônicos, nessa imensidão sideral de ideias. Sua poesia de resistência ocupa um caráter contra o oprimido e este poder é ideológico, visto que é a ideologia algo completamente corporificado nas relações humanas. Dessa forma, a rigor implícito, o exercício poético de Thiago de Mello é fruto do poder para se atingir a liberdade, ou ainda é capaz de descobrir este próprio poder para reinventá-la.

Não é fácil tentar mostrar em poucas linhas a poesia globalizadora de sua obra que enfatiza a fragmentação do homem moderno, pois iniciou-se nas letras assumindo na mais franca atitude de participação em todos os acontecimentos políticos. Registrando logo a sua importância como possibilidade de renovação da vida brasileira, vivendo intensamente todos os momentos da nossa história, emprestando-lhe o seu talento de orador e panfletário, autêntico sentimento da realidade social. Thiago se mantém fiel a si mesmo em estilo transcendente e deixa penetrar na esfera de sua atividade psíquica, para sentir as imundícies humanas num forte pessimismo.

Thiago é considerado uma das figuras mais originais da poesia latino-americana contemporânea. A riqueza de suas imagens, a forma expressiva de sua linguagem corresponde a um poeta que tem expressado estar comprometido “com a vida do homem, contra tudo que nega e destrói a beleza e a dignidade humana”.

Internacionalmente conhecido por sua luta em prol dos direitos humanos, pela ecologia e pela paz mundial, Thiago produziu uma poesia indomável, a grande voz da Amazônia, é responsável pela introdução de alguns poetas latinos no Brasil, através de suas traduções: Pablo Neruda- Antologia Poética (1963), Cesar Vallejo – Poesia Completa (1984), Nicolas Guillén – Sôngoro Consongo e Outros Poemas (1986) e Ernesto Cardenal. Nos anos 1965 e 1966, dirigiu para a Editora Civilização Brasileira a coleção “Nossa América”, onde foram publicados livros de Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Augusto Cespedis, Onetti e tantos outros.

Thiago morou em muitos países, divulgando seu canto de luta. Hoje vive dentro da floresta amazônica, na cidade de Barreirinha, numa casa projetada por Lúcio Costa. O poeta caboclo e verdadeiramente admirável, um sonhador cujos versos enriquecem a literatura brasileira, sua pena é um instrumento dócil, fino e riquíssimo de possibilidades, mostrando-se insuperado e insuperável, por isso a sua rigidez, riqueza e variedade de seus versos.

Thiago de Mello é um dos grandes poetas engajados na luta revolucionária, como foi Marti, Dario, Maiakóvski, Neruda e Guillén. Apesar da sua brilhante trajetória social, o poeta ainda precisa penetrar nas fábricas, nas escolas, nos campos, nas construções e, por fim, em todos os lares, em todas as consciências.

Publicado originalmente em 2012 no site Musa Rara

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