2º SEMCINE: Cinema político na América Latina e na Europa

Por Eduardo Carvalho

Os destaque deste dia dedicado à discussão sobre o Cinema Político na América Latina e na Europa ficaram por conta do chileno Littín e do italiano Marotti. Carta Maior conversou com exclusividade com Strawalde, cuja aguardada parti

O segundo dia do 2º Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, que acontece em Salvador desde o dia 2 de abril e estende-se até o dia 9, trouxe mesas redondas sobre o tema Cinema Político. Na parte da manhã, a América Latina foi o alvo das considerações de Miguel Littín e Eduardo Escorel falou sobre a disseminação do fazer cinema e a obsolescência do profissional de cinema. À tarde, deslocou-se o eixo para a Europa, mas o tema debatido por Jüger Böttcher Strawalde, Ferruccio Marotti e Elio Rumma continuou o mesmo da primeira parte da mesa anterior.

 

A aguardada participação de Strawalde, cineasta que teve sua obra censurada na República Democrática Alemã, RDA, decepcionou um pouco a platéia e o próprio artista que apontou a dificuldade de discutir uma obra cinematográfica composta por filmes que ninguém naquele auditório havia visto. Assim, os pontos altos do dia foram as falas de Littín, pela manhã, e de Marotti, no período da tarde.

 

Um certo cineasta clandestinoA terceira mesa de debates do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, discutiu, na manhã desta terça-feira, no Salão Nobre da Reitoria da UFBA, o Cinema Político: Experiência Latino-americana. Mediados por Geraldo Sarro, o chileno Miguel Littín e o brasileiro Eduardo Escorel, ambos cineastas, compuseram a mesa.

 

Miguel Littín é um ícone vivo do cinema de resistência Latino-americano. É autor, entre outoros, de “Acta General de Chile”, cuja aventura em que esteve enredado durante a filmagem clandestina em 1985 no seu próprio país tornou-se livro de Gabriel Garcia Márquez, intitulado “A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile”. Disfarçado e com documentos falsos, com o apoio de organizações clandestinas e de equipes européias de cinema, Littín percorreu todo o Chile para realizar este filme que se desdobrou em uma película de quatro horas para a televisão e em outra de duas horas para o cinema.

 

A postura política de seus filmes “brota naturalmente, a partir da construção de uma consciência humanista e libertária”, diz o próprio Miguel. Esta mesma consciência já estava presente em mais uma importante obra de denúncia do regime imposto no Chile pela ditadura Pinochet, “Actas de Marusia”, realizado em 1974 no México. Littín filmou também “La Ultima Luna” que mostra a amizade entre um palestino e um judeu, tema que muito ocupa o cineasta.

 

Littín abriu sua fala evocando a lembrança do Festival de Viña del Mar que, em 1967, “foi nosso encontro com a História” – segundo o cineasta chileno. Naquela ocasião, a fala de Glauber Rocha resumia o estado dos ânimos: “nosso cinema é novo porque o homem latino-americano é novo, a problemática é nova e nossa luz é nova, por isso, nossos filmes são diferentes. O cineasta do futuro deverá ser um artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo. Queremos filmes de combate na hora do combate”. Estruturava-se ali uma malha de cinema engajado que acalentaria o sentido de resistência durante a continuidade daqueles anos duros na América Latina.

 

Miguel Littín, continuou narrando seu envolvimento naquela história que se confundiria com a sua própria. Elencou as motivações e as palavras de ordem que impulsionavam os experimentos estéticos e apontavam um rumo ideológico libertário que acabou alvo dos regimes totalitários para interromper carreiras de inúmeros cineastas lançados ao exílio. Falou da continuidade da luta na clandestinidade e, com o distanciamento épico entre os fatos daqueles dias e sua análise de hoje, encerrou dizendo que talvez o legado de sua geração de cineastas “seja um fotograma em que se reflete um instante fugaz do tempo de um século já passado. Se assim é, que sirva então de testemunho para que os novos cineastas latino-americanos prossigam sem trégua na caminhada em busca da utopia de um mundo melhor, de uma sociedade mais livre, aspirante do amor”.

 

Na seqüência, Eduardo Escorel abordou a questão da apropriação do meio de produção de cinema sem, porém, estabelecer laço com a temática da mesa. Sua fala estaria mais apropriada ao tema social, ou sócio-econômico e não propriamente ao político. Mas este feliz tangenciamento ilustrou um aspecto pouco difundido da transformação que o cinema está sofrendo no sentido de fundir-se ao emblemático ideal do Cinema Novo: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” deixa de ser um manifesto de um movimento e torna-se a realidade de um processo.

 

Escorel afirmou que, diante da atual facilidade de acesso aos meios de produção de cinema e graças à disseminação de experiências e projetos de capacitação, como a que acontece com os índios no Projeto Vídeo nas Aldeias, “o chamado “registro de dentro” tem sido apontado como mais verdadeiro do que o “registro de fora”, pois somente quem vive perto de uma dada realidade ou imerso nela é que supostamente seria capaz de ter um novo olhar, um olhar de compreensão sobre ela”. Esta demonstração corrobora a tese defendida no dia de ontem, quando analisou-se esta mesma tese sob o prisma do olhar estrangeiro para o Brasil.

 

Ainda neste contexto, Eduardo Escorel demonstrou que há quem veja motivações positivas nesta obsolescência do “profissional de cinema”. Nisso, cita João Moreira Salles quando diz que “o fato de não termos mais a prerrogativa da exclusividade poderá ser, talvez, nossa eventual salvação. Nós estaríamos liberados para realizar um cinema que busque em si mesmo sua razão de ser, não precisando existir senão para si mesmo. Dispensados do dever de consertar o mundo, temos tempo de refletir sobre as pequenas belezas de nossa profissão. Em geral, isso produz o deslocamento da atenção do tema para a maneira de narrar. O olho que olhava para fora volta-se para dentro. E estes são os momentos espantosos! É quando a história é realmente reescrita!”.

 

Dos dois lados do muro, mas nunca em cima A mesa da tarde abordou o mesmo tema, porém com geografia diversa. Cinema Político na Europa reuniu, sob a segura mediação de Leonardo Boccia, três atrações internacionais do seminário: o cineasta e artista plástico alemão, Jürgen Böttcher Strawalde e os italianos Ferruccio Marotti, professor da Universidade de Roma La Sapienza e Elio Rumma.

 

Após uma poética e pontual introdução do mediador Leonardo Boccia, o sucinto cineasta alemão contou que a experiência mais marcante de sua vida, e a de maior influência em sua arte, deu-se em maio de 1945, quando os horrores e o sangue dos campos de batalha chegaram ao bucólico vilarejo rural de Strawalde, onde ele vivia desde que nascera em 1935. Ele conta que o verde daquele maio foi lindo e contrastou muito com o vermelho do sangue de jovens que morriam por toda parte, jovens alemães, jovens russos, com a linha do front atravessando seu lugar seguro onde viveu a infância de privações causadas pela guerra já em curso.”Já havia ali o pintor”, declarou Strawalde embargado pela emoção residual de suas memórias. Deixou o principal para a rodada de perguntas ao final, quando falou das influências cinematográficas com que manteve contato na RDA, onde, nas ruínas de Dresden, aos 19 anos, foi estudar Belas Artes: o cinema russo dos anos 20 com seu extenso menu de clássicos e diretores épicos, a poesia de Maiakowski, um pouco do cinema francês e não mais do que isso.

 

Em conversa exclusiva que tivemos com Strawalde, pudemos sondar um pouco de sua personalidade, que insinua contornos paradoxais, conscientes, bem resolvidos, mas paradoxais.

 

No início de nossa conversa, bem como no princípio de sua fala no seminário, fez questão de mostrar-se efusivamente grato por estar no Brasil podendo mostrar sua obra cinematográfica, mas, principalmente, a pictórica que será exposta na capital baiana a partir da próxima quinta-feira. Disse que constatou, em poucos dias, que Salvador é maravilhosa embora tenha também percebido que a situação social é bem difícil, mas está encantado de poder mostrar sua obra, sua pintura e seus filmes. Sente-se feliz, não sabe dizer se é a fama que o atinge agora que completou 70 anos, e que isso não importa, mas que está muito satisfeito por estar conhecendo vários lugares do mundo onde tem sido homenageado. No ano passado, a imprensa alemã fez uma homenagem aos seus 70 anos, no embalo de seu prêmio honorífico em Berlim e resgatou sua imagem que andava um pouco esquecida.

 

Strawalde declarou preferir as Belas Artes ao cinema: “a pintura é a arte que tem mais tradição, tem maior histórico e acumula um discurso histórico que remonta há mais de 8 mil anos. O cinema é muito mais recente, está em sua fase inicial, em sua infância se comparada com a pintura que dialoga com milhares de anos de História”. Diante de sua resposta, propus-lhe uma hipótese: se fosse capaz de transformar qualquer filme seu em uma tela, condensando os milhares de fotogramas em uma única tela absoluta, qual filme escolheria. Paradoxalmente, ele declarou ser “impossível fazer isso. Não dá para transformar um filme em qualquer outra manifestação artística. Na verdade, eu realizei as filmagens exatamente porque não tinha as condições de pintar o que conseguia colocar nos filmes. Possivelmente seria possível transformar em cinema uma cena das lavadeiras nos rios como as que vi, mas ela não poderia ser transformada em pintura com a mesma intensidade e poesia, não caberia na tela a acústica, o feitiço, o momento, a energia.”

 

A respeito das comemorações que o envolveram em 2005, disse: “a homenagem que recebi no Festival de Berlim foi dada pela importância e contribuição que minha obra deu ao cinema. Além de meus filmagens, realizei outras filmagens dentro da Berlim Oriental para outros diretores. Foi o conjunto destas realizações que recebeu o prêmio no Festival de Berlim. O prêmio veio pelo conteúdo e pela realização em si, um conjunto difícil de dissociar”.

 

Perguntado enfim sobre a censura da qual foi vítima na RDA, ele explicou que “não era possível para um cineasta, naqueles dias, trabalhar contra o sistema, pois a produção era financiada pelo sistema! Meus filmes não tinham intenção combativa, eu queria apenas mostrar algo mais, queria abrir os olhos para outras formas, mais sensíveis, de mostrar as coisas e as pessoas. Eu queria melhorar aquele sistema, não queria combatê-lo. Muitos artista naqueles dias queriam isso, eu não”.

 

Depois de Strawalde, ferruccio Marotti, autor do filme “Gian Maria Volunté – um Atore Contro”, que foi exibido após o debate, contou-nos, ilustrando com cenas de Volunté atuando, um pouco da importância deste obstinado ator e militante do cinema engajado europeu. Desde sua luta pela classe artística que lhe rendeu uma perseguição política forte por parte dos produtores e distribuidores ainda hoje, com ele já morto, até sua carreira de obras excepcionais, e premiadas, como “A Classe Operária Vai ao Paraíso” ou “Cidadão Acima de Qualquer Suspeita”. Foram 57 filmes deste homem sempre empenhado em atribuir ao ofício de artista a qualidade de artista, o que a indústria não reconhecia e tratava como bonecos de madeira sendo fotografados sob a luz. Uma biografia genial.

 

Elio Rumma saudou Leon Hirszman que, em 1981, recebeu o Leão de Ouro do Festival de Veneza com o filme “Eles não usam Black-Tie”, único brasileiro já agraciado com este importante prêmio. Depois montou um cinema italiano das décadas de 60 até os dias atuais, focando sobre a produção que atendia pela orientação do engajamento civil, termo que prefere ao “cinema político”, pois, em sua opinião, todo gesto humano é político, assim, todos os filmes o são. Ressaltou a importância dos grandes roteiristas italianos e apontou nós da imensa redes de influências culturais que de alguma forma sugestionaram a orientação ideológica das obras que comentou em crescente ordem cronológica.