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Tortura na Febem provoca rebeliões, diz entidades

Por Fernanda Sucupira

Entidades de direitos humanos encaminharam provas à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que em novembro de 2005 já havia determinado o

“Chega de opressão”. Essa foi a frase escrita por adolescentes nos telhados de algumas unidades do Complexo do Tatuapé da Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor) de São Paulo, durante rebelião que começou na noite de terça-feira (4). O motim só terminou na tarde do dia seguinte, após intervenção da tropa de choque da polícia militar, resultando em mais de cinqüenta feridos, entre internos e funcionários. Entidades de direitos humanos que haviam visitado o complexo alguns dias antes acreditam que o principal motivo da rebelião tenha sido a continuidade da tortura e dos maus tratos.

 

Nesta semana, elas encaminharam as provas obtidas à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), que em novembro de 2005 determinou o cumprimento de oito medidas provisórias em relação ao Complexo do Tatuapé, para garantir a vida e a integridade pessoal dos mais de 1,2 mil adolescentes que cumprem medidas sócio-educativas no local. Em fevereiro deste ano, as mesmas organizações já haviam enviado relatório à Corte, informando que o governo estadual estava desrespeitando as determinações do órgão e denunciando a total omissão do país em relação aos adolescentes, visto que dois jovens morreram durante a vigência delas.

 

As entidades peticionárias do caso na OEA, que fiscalizam o cumprimento das medidas estabelecidas pela Corte, afirmam que na última visita encontraram adolescentes com marcas recentes de torturas, agressões e maus tratos, e outros jovens com problemas de saúde sem atendimento médico. Além disso, segundo eles, os internos estão com medo de serem transferidos para o presídio do Tatuapé, que estaria sendo reformado para isso.

 

Para a diretora do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, a rebelião ocorreu como uma forma de resistência dos internos para deixarem de apanhar. “Qualquer dia da semana que você for lá encontra adolescentes machucados, em isolamento ou nas enfermarias. Temos fotos e outras provas disso. Nos dias em que eles contaram que haviam sido espancados, havia registro de que foram ‘colocados para refletir’ e logo depois constava que foram levados para a enfermaria”, relata.

 

Em nota pública divulgada pelas entidades, elas afirmam que é estarrecedor que mesmo após a determinação das medidas provisórias da Corte as violações de direitos humanos aconteçam recorrentemente e as condições dos internos se deterioram cada vez mais. “Não há precedente no continente de qualquer país que tenha recebido ordens de medidas provisórias da Corte Interamericana em favor de pessoas ou adolescentes privados de liberdade e que não as cumpram minimamente, como vem ocorrendo no caso do Brasil, através da atuação do Estado de São Paulo. As graves violações permanentes vêm aprofundando a situação de total descumprimento”, denunciam.

 

No fim de março, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) começou o processo de desativação do Complexo do Tatuapé da Febem de São Paulo, sem que nenhuma das novas unidades prometidas no ano passado estivesse em funcionamento. “Derrubar aquela unidade foi uma ação absolutamente política, sem nenhuma responsabilidade. Demoliram tijolos com cimento, deixando apenas mais desconfortáveis os outros internos porque os adolescentes foram redistribuídos dentro do Complexo”, avalia Beatriz.

 

Para o advogado Ariel de Castro Alves, da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do jeito que vem sendo feito esse processo só vai resultar em “descentralização e regionalização dos velhos vícios, problemas e irregularidades da Febem”.

 

Terceirização da responsabilidade – As organizações peticionárias também solicitaram uma visita urgente do relator para pessoas privadas de liberdade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Florentin Menendéz, para que ele possa conferir in loco a situação grave em que se encontram esses adolescentes.

 

“Com a vinda dele, o Estado vai ficar mais constrangido por responsabilizar defensores de direitos humanos pela rebelião”, afirma Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (Cejil), referindo-se às recentes acusações por parte do governador de São Paulo, Cláudio Lembo (PFL), e da presidente da Febem, Berenice Giannella, de que os motins são provocados por essas organizações. Para ela, é lastimável que mais uma vez o governo estadual não assumam sua responsabilidade. “Os agentes externos não têm nenhum interesse em que ocorram mais rebeliões. Os responsáveis têm que ser responsabilizados e o governador é o primeiro da lista, pois é ele quem dá a diretriz política da instituição. Sob a minha tutela não tem nenhum adolescente sendo torturado”, completa a diretora do Cejil.

 

Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “novamente eles tentam se desresponsabilizar e transferir a responsabilidade para as entidades de defesa dos direitos humanos, para jogar a opinião pública contra elas, numa tentativa de intimidação”. “É um discurso fascista, irresponsável e absurdo da principal autoridade do estado de São Paulo, que já começou seguindo os passo do seu antecessor. Isso não nos surpreende vindo de alguém que sempre teve simpatia pelo regime militar”, diz Alves.

 

Essas atitudes do governo estadual – de não cumprir as recomendações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e ainda culpar os defensores de direitos humanos – podem favorecer a aceitação do caso de fundo pela Corte e levar a uma possível condenação. Essas medidas provisórias fazem parte de um caso maior, que engloba as violações ocorridas em todas as unidades da Febem de São Paulo, enviado em 2000 para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pelo Cejil e pela Comissão Teotônio Vilela e acolhido em 2002.

 

Após audiência na Comissão, em março deste ano, em que as partes não chegaram a um acordo, o caso foi enviado à Corte e agora aguarda ser aceito por ela. Paralelamente, como essa tramitação é lenta, em dezembro de 2004 a Comissão concedeu medidas cautelares, dentro desse caso geral, em relação aos adolescentes do complexo Tatuapé, acolhendo as denúncias de que havia risco iminente de danos irreparáveis aos internos. Por conta do descumprimento dessas medidas emergenciais, essa questão foi encaminhado à Corte e admitida por ela em novembro de 2005.

 

“O fato de não haver nenhuma vontade política do Estado para resolver esse processo, pode influenciar na corte. As medidas provisórias são espaços de negociação, mas tudo que o sistema interamericano de direitos humanos oferece ao Estado brasileiro não tem sido utilizado com responsabilidade. Isso diminui a confiabilidade da Corte no Estado brasileiro para erradicar essa situação”, explica a diretora do Cejil.