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Intervenção de Ronald Freitas no julgamento do Processo de Anistia dos Guerrilheiros do Araguaia

Confira abaixo a íntegra do pronunciamento feito pelo dirigente comunista Ronald Freitas nesta quarta-feira (12 de abril) durante sessão de julgamento do Processo de Anistia dos Guerrilheiros do Araguaia:

 

Esta sessão da Comissão de Anistia no dia de hoje é cheia de simbolismo. No longínquo 12 de abril de 1972 iniciava-se a heróica resistência de um punhado de jovens brasileiros, que, cheios de amor pelo seu povo e por sua pátria, pegaram em armas, já que outros caminhos lhes era negado.

Lutaram em defesa do direito de viver com dignidade, de pensar livremente e poder expressar esses pensamentos e, objetivo maior, de lutar para transformá-los em ação dignificante do país e do nosso povo.

A história nunca os esquecerá e por isso eles não morreram em vão, eles estão presentes no cotidiano da luta de nosso povo, por meio de seu exemplo de: patriotismo, desprendimento, altruísmo e coragem.

Nesta sessão, não tenho dúvida, far-se-á justiça a esses homens e mulheres, que souberam honrar suas famílias e o seu país. Far-se-á justiça porque será o reconhecimento de que eles eram combatentes políticos, defensores de uma causa nobre que a história comprovou correta. E ao fazer-se justiça, se reafirma mais uma vez, a lição que nos foi legada pela mitologia grega, imortalizada no clássico de Sófocles, Antígona, onde se aprende que o ‘justo’ é aquilo que corresponde aos mais profundos e nobres impulsos do ser humano, e não aquilo que é imposto por um governo, por mais poderoso que momentaneamente seja.

Reportemo-nos, mesmo que brevemente, às circunstancias políticas que vivia nossa pátria naquele então.

Vivíamos os anos da mais longa e cruenta ditadura que a nossa breve história republicana registra (1964/1985). Eram os anos de chumbo. Não existiam liberdades políticas, as lutas democráticas e sociais dos operários, dos camponeses, dos jovens estudantes, dos partidos políticos independentes da tutela governamental, eram consideradas subversão da ordem.

A sociedade se viu privada de canais de mediação política modernos, como partidos políticos, sindicatos e quaisquer outros tipos de organizações sociais independentes e autônomas. Vivíamos em um regime de terrorismo de estado, imposto ao país por uma elite retrógrada e seus agentes, em nome da ‘democracia e dos valores da civilização ocidental’. Não podemos deixar de nos referir ao poeta. Liberdade, quantos crimes se comete em teu nome. E foi contra essa situação, esse ‘estado de coisas, ’ que esses bravos jovens se levantaram, e ousaram lutar, com os meios que a época histórica e as circunstâncias políticas exigiam.

Nesta sessão, senhores conselheiros, ao se fazer justiça a esses lutadores do povo, reconhecendo seus direitos, se estará reparando uma profunda injustiça cometida contra eles e contra o país. E ao agir assim, os senhores estarão sendo a demonstração viva da capacidade de regeneração do próprio Estado, que estará se mostrando capaz de superar erros e também se mostrando maior e mais importante que eventuais governos que se considerem maior que a história e a vida.

Nesta sessão, por meio deste julgamento, se estará também consagrando e dignificando o papel da sociedade civil organizada, que é um importante componente do Estado, e que de forma independente, persistente e obstinada, abraça causas muitas vezes consideradas impossíveis, mas que, pela sua justeza intrínseca, sempre se tornam vitoriosas, por mais que se prolate no tempo o desfecho de suas demandas. As causas hoje em julgamento nesta comissão, são a comprovação viva dessa assertiva.

Essas reflexões sobre dias passados não são mero exercício de retórica, ou de abstracionismo estéril. São a manifestação de profunda convicção de que a história é um seguro guia do presente e do futuro, desde que seja vista como uma luz a iluminar os caminhos individuais e coletivos da construção da felicidade pessoal e da prosperidade dos povos e nações, e não como um desfilar de fatos estanques e desconexos.

Mas, se ontem foi a resistência, luta e sacrifício de tantos brasileiros, como no Araguaia e Trombas, que garantiram os dias de liberdade e afirmação soberana atuais, hoje, novos desafios são postos com o mesmo conteúdo, e estão a nós exigir discernimento e coragem para vencê-los e superá-los.

Hoje, no alvorecer de um novo século e de um novo milênio, vive o nosso país uma experiência política e social singular.

O fim da guerra fria, o estabelecimento no mundo do hegemonismo absoluto, em todos os terrenos – do político ao econômico, do diplomático ao cultural, do militar ao científico – pelos Estados Unidos da América, cria uma situação nova na luta do povo brasileiro para construir uma pátria soberana, desenvolvida e socialmente justa. Luta muito complexa e de largo significado histórico, que exigirá a participação de todos os brasileiros, comprometidos com o passado, o presente e o futuro do nosso país. Essa nova situação internacional é, provavelmente, a mais séria ameaça já sofrida pelas nações soberanas do mundo.

O Estado Americano do Norte não respeita regras e normas internacionais, quando se trata de impor o seu dictat aos povos. Os recentes acontecimentos do Iraque são provas irrefutáveis dessa assertiva. Paira sobre os povos e nações livres do mundo, uma ameaça de recolonização.

Como parte da luta e resistência de nosso povo a essa situação, insere-se a eleição de Lula à presidência da república em 2002. Pela primeira vez, um conjunto de forças políticas de feição progressista e de caráter de centro-esquerda elege um Presidente da República, de origem humilde, torneiro-mecânico de profissão, sendo membro de um partido político considerado de esquerda radical, o PT, e o mais ‘exótico’, tendo como aliado de primeira hora o Partido Comunista do Brasil.

Após décadas, volta ao governo do país um conjunto de forças políticas democráticas, progressistas e de esquerda, deslocando deste espaço as elites tradicionais, nacionais e estrangeiras, que, conservadoras e preconceituosas como são, tudo procuram fazer para que seus "legítimos representantes" voltem aos postos de mando da república.

Essas elites se comportam de forma recorrente, com relação aos métodos de manutenção do poder, quando sentem que seus interesses de fundo são ameaçados, mesmo que estejam auferindo gordos lucros nos seus negócios cotidianos. Lembremo-nos dos anos de 1950, quando feroz campanha oposicionista levou Getúlio Vargas, então Presidente da República, ao suicídio. Ou a oposição também feroz e sem limites que sofreu Juscelino durante seu governo, ou ainda, a desestabilização e posterior deposição de João Goulart, em 1964, que gerou a situação política que hoje estamos parcialmente redimindo.

Hoje, diante de uma nova situação nacional e internacional, essas mesmas elites mudam um pouco os instrumentos de desestabilização, mas continuam com os mesmos objetivos: afastar do governo segmentos sociais que não lhes sejam totalmente dóceis.

Nos anos 60/70 do século passado, Trombas e Formoso, Araguaia, e outras batalhas, foram a expressão da luta necessária e possível que foram heroicamente travadas, mas não plenamente vitoriosas. Hoje continuamos a lutar para conquistar aqueles objetivos, pois os problemas que os determinam se mantêm vivos a exigirem solução. Assim podemos afirmar, não só que as lutas travadas naqueles anos, dentre as quais se destaca a resistência do Araguaia, não foram em vão, mas que elas continuam. O Araguaia continua.

Continua na luta em defesa da ampliação e radicalização da democracia representativa em nosso país, para que o mister político não se transforme na arena de disputa onde o dinheiro seja o fator determinante do êxito. Continua na defesa da Soberania Nacional, que está a exigir de todos nós uma luta decidida contra as investidas do hegemonismo americano. Pois a soberania, considero, é o valor maior para que exista um Estado Brasileiro próspero e justo. Continua na necessidade de construir um país desenvolvido e socialmente justo, compatível com nossas necessidades, e absolutamente possível de ser realizado.

Senhores conselheiros, senhoras e senhores, familiares dos perseguidos políticos que pleiteiam reconhecimento de seus direitos, permitam-me que no encerrar dessas palavras, preste uma sentida e comovida homenagem, em nome do Partido Comunista do Brasil, e no meu próprio nome à D. Julieta Petit da Silva, lutadora e guerreira, mãe de família que teve três de seus filhos caídos no campo de gloria da luta libertária do Araguaia. D. Julieta, a senhora é muito justamente um símbolo da resistência e luta do povo brasileiro.

Generosa, corajosa, determinada e persistente, na sua justa luta por ver a memória e os direitos de seus filhos estabelecidos e respeitados. Foi vitoriosa, como um dia o povo brasileiro também o será. Tenha certeza, que junto com os demais, os nomes de seus filhos estarão para sempre escritos na historia, na memória e no coração do Brasil e dos brasileiros.

Ao homenageá-la, homenageamos todos aqueles que com sua luta contribuíram para que o Brasil vivesse em clima de liberdade política e social, e dessa maneira tivesse melhores condições de construir um futuro soberano, democrático, desenvolvido e socialmente justo.

Ronald Cavalcanti Freitas.

Brasília, sala das sessões da Comissão de Anistia.

12 de Abril de 2006