John Pilger: A liberdade morre em silêncio

O Partido Trabalhista britânico, liderado por Antony Blair, tem torpedeado cada vez mais as chamadas "instituições e liberdades democráticas" seculares do Reino Unido. A medida mais recente, em debate no parlamento, é

"Isso está acontecendo no Reino Unido?" perguntam as pessoas. Certamente não. Um sistema democrático secular não pode ser varrido. Os direitos humanos básicos não podem se tornar abstrações. Aqueles que outrora reconfortavam-se dizendo que um governo trabalhista nunca cometeria um crime tão gigantesco no Iraque podem agora abandonar a última ilusão, a de que a sua liberdade é inviolável.

A agonia da liberdade no Reino Unido não é notícia. As piruetas do primeiro-ministro e do seu gêmeo político, o chanceler, são notícia, embora de mínimo interesse público. Olhando atrás, para a década de 1930, quando as sociais-democracias estavam distraídas e poderosas cliques impunham seus caminhos totalitários através da discrição e do silêncio, a advertência é clara. O Legislative and Regulatory Reform Bill já passou pela sua segunda leitura parlamentar sem que despertasse o interesse da maior parte dos deputados trabalhistas nem dos jornalistas da corte, ainda que seja absolutamente totalitário no seu objetivo.

Esta lei é apresentada pelo governo como uma simples medida para simplificar a desregulamentação, ou para "livrar-se da burocracia", ainda que a única burocracia que ela realmente removerá é aquela do exame parlamentar da legislação do governo, incluindo esta notável lei. Isto significará que o governo pode mudar secretamente o Parliament Act, e a constituição e as leis podem ser derrubadas por decreto da casa número 10 da rua Downing Street (Residência do primeiro-ministro britânico). Blair demonstrou o gosto pelo poder absoluto com o seu abuso da prerrogativa real, a qual utilizou para ultrapassar o parlamento indo à guerra e libertando-se das decisões dos julgamentos dos tribunais superiores, tal como aquele que declarou ilegal a expulsão de toda a população das Ilhas Chagos, agora lugar de uma base militar americana. A nova lei marca o fim da verdadeira democracia parlamentar. Nos seus efeitos, isto é tão significativo como o Congresso dos EUA abandonar no ano passado a Bill of Rights.

Aqueles que deixam de ouvir estes passos no caminho para a ditadura deveriam olhar para os planos do governo quanto a bilhetes de identidade (ID cards), descritos no seu manifesto como "voluntários". Eles serão obrigatórios e ainda piores. Um bilhete de identidade será diferente de uma licença de condução ou de um passaporte. Será conectado a uma base de dados chamada NIR (National Identity Register), onde seus pormenores pessoais serão armazenados. Isto incluirá suas impressões digitais, um rastreamento (scan) da sua íris, sua residência, status e inúmeros outros pormenores acerca da sua vida. Se você deixar de comparecer a uma entrevista a fim de ser fotografado e de lhe tirarem as impressões digitais poderá ser multado em mais de 2.500 libras.

Todo lugar que vende álcool ou cigarros, toda agência de correios, toda farmácia e todo banco terá um terminal NIR onde poderão pedir-lhe para "provar quem é". Cada vez que você usar o cartão será efetuado um registo no NIR. Assim, por exemplo, o governo saberá todas as vezes que você retirou mais do que £99 da sua conta bancária. Restaurantes e estabelecimentos sem licença exigirão que o cartão seja apresentado de modo a que possam ser compensados de ações em tribunal. Os negócios privados terão pleno acesso ao NIR. Se você se candidatar a um emprego, o seu cartão terá de ser apresentado. Se quiser um bilhete do Metrô de Londres, ou um cartão de fidelidade de um supermercado, ou uma linha telefônica ou um celular ou uma conta Internet, o seu ID card terá de ser exibido.

Em outras palavras, haverá um registro dos seus movimentos, suas chamadas telefônicas e hábitos de compra, até mesmo da espécie de medicamentos que toma. Estas bases de dados, que podem ser armazenados num dispositivo do tamanho de uma mão, serão vendidas a terceiros sem o seu conhecimento. O ID card não será sua propriedade e a Secretaria do Interior (Home Secretary) terá o direito de revogá-lo ou suspendê-lo a qualquer momento sem explicação. Isto o impediria de retirar dinheiro de um banco.

Os ID cards não freiarão terroristas, como admitiu agora o secretário do Interior, Charles Clarke. Os terroristas de Madri também usavam ID cards. Em 26 de março o governo atuou para silenciar a oposição parlamentar aos cartões, anunciando que um comitê investigaria banir a Casa dos Lordes de bloquear legislação contida num manifesto do partido. A clique de Blair não quer o debate. Tal como o fanático da Downing Street, sua "crença sincera" na sua própria veracidade é suficiente. Quando a London School of Economics publicou um longo estudo que demole efetivamente a justificação do governo para os cartões, Clarke insultou-a por alimentar uma "campanha de medo nas mídias".

Trata-se do mesmo ministro que comparecia a todas as reuniões do gabinete nas quais eram evidentes as mentiras de Blair sobre sua decisão de invadir o Iraque.

Este governo foi reeleito com o apoio de apenas um quinto dos votos elegíveis: a segunda proporção mais baixa desde a cidadania. Qualquer que seja a respeitabilidade que as famosas sequências em estúdios de televisão tentem dar-lhe, Blair está demonstravelmente desacreditado como mentiroso e criminoso de guerra.

Com a lei do seqüestro constitucional agora a alcançar suas etapas finais, e a criminalização de protestos pacíficos, os ID cards são concebidos para controlar as vidas dos cidadãos comuns (assim como para enriquecer as novas companhias favorecidas pelo Partido Trabalhista, que construirão os respectivos sistemas de informática). Um grupo pequeno, determinado e profundamente anti-democrático está matando a liberdade no Reino Unido, assim como matou-a literalmente no Iraque. Esta é a notícia. "O caleidoscópio foi sacudido", disse Blair na conferência de 2001 do Partido Trabalhista. "As peças estão em movimento. Logo ficarão ajustadas outra vez. Antes que o façam, vamos reordenar este mundo em torno de nós".

John Pilger é jornalista, nascido em Sydney, na Austrália. Ex-correspondente de guerra, diretor de cinema e autor de peças de teatro, mora em Londres e ganhou por duas vezes o mais alto prêmio do jornalismo britânico, o de "Journalist of the Year", pelo seu trabalho no Vietnã e no Camboja.

O original encontra-se em http://www.newstatesman.com/200604170017

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.