Questão do Acre: gás e veneno nas relações Brasil-Bolívia

O.K., Evo, você é fogo! Com essa história de cavalo (ele teria declarado que o Estado do Acre foi comprado em troca de um cavalo, uma referência a uma espécie de mimo ofertado em uma das fases de negociações) voc&ec

Por Osvaldo Bertolino

Como seria de esperar, a afirmação de Evo Morales funcionou como um pano vermelho: atraiu a ira de touros enraivecidos, que o acusaram, entre outras coisas, de ignorante. O presidente boliviano certamente conhece a história e não é o paspalhão que a mídia tenta pintar. Evo Morales reagiu movido por brios cívicos. Ele é acusado de selvagem na verdade por não se amoldar à “racionalidade do capitalismo moderno” e jogar contra as regras do “consenso universal” de uma "nova ordem mundial" imune a todo e qualquer questionamento. A questão é que, como costumava dizer o legendário Barbosa Lima Sobrinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Brasil existem dois partidos: o de Tiradentes e o de Joaquim Silvério dos Reis.

A chamada “Questão do Acre” se insere aí. É uma longa história, que começa no início do século 20 e oportunamente foi rememorada por Evo Morales para explicar o desenvolvimento das relações entre o Brasil e a Bolívia, marcadas por ingerências imperialistas. Uma das causas da referida questão, que por pouco não levou os dois países à guerra declarada, foi de natureza igual à da que está determinando, no momento, a tentativa da direita de semear a discórdia entre brasileiros e bolivianos — o interesse econômico dos monopólios acima de tudo. Enquanto o Brasil comprava o gás da Bolívia a preços fora da realidade, tudo caminhava às mil maravilhas. Mas, desde que as circunstâncias permitiram que o governo boliviano revisse os contratos, o país vizinho passou a ser tratado como um antro de selvagens.

Fanáticos com o diabo no corpo

O Acre, até os primeiros dias do século 20, era uma floresta virgem, praticamente desabitada. Sua pequena população constituía-se de brasileiros na maior parte — principalmente cearenses que para lá emigraram desde a terrível seca que assolou o Estado do Ceará em 1877. A valorização da borracha alterou o destino daquela selva bruta: o governo da Bolívia, subitamente, foi despertado para a sua posse definitiva. Antes desprezado, o Acre passou a ser, daí em diante, um tesouro de dura disputa em que as partes adversas verteriam sangue, reivindicando cada qual direitos de propriedade legítimos.

A luta armada num terreno que os bolivianos desconheciam, defendido por gente que, segundo notícias da época, era toda ela constituída de “fanáticos com o diabo no corpo”, foi suspensa para que, em seu lugar, o poder econômico falasse mais grosso. E como sempre ocorre nessas ocasiões, a negociação política cedeu espaço para a farsa. Um antigo ministro da Bolívia em Londres, chamado Felix Avelino Aramayo, foi designado para organizar uma empresa norte-americana e explorar o Acre. “Trata-se de introduzir na questão um elemento neutro (a empresa norte-americana), suficientemente rico, poderoso e influente, que possa fazer valer a justiça e fazer respeitar a lei dentro do território boliviano, onde as autoridades nacionais são impotentes diante das ameaças do governo de Manaus”, justificou Aramayo.

Presença do Departamento de Estado

O testa-de-ferro explicou ainda: “Circunstâncias, verdadeiramente providenciais, permitiram pôr-me em contato com os capitalistas e empresários poderosos e de grande prestígio que subitamente se mostraram dispostos a investir seus capitais na Bolívia.” A palavra “subitamente” é reveladora. Em 1901, o Congresso boliviano convocou Aramayo para dar explicações. “Quando logrei ajustar o contrato, enchi-me de satisfação, e, desde esse instante, não tive outro pensamento senão o de vir repartir com os meus compatriotas minhas grandes esperanças. Não haverá um só boliviano — pensei — que não veja nesse contrato a salvação da pátria. A aprovação dele há de ser unânime”, disse ele. E assim nasceu o “Bolivian Syndicate”.

Como ocorre sempre quando se trata de investimentos de capitais norte-americanos, por trás do negócio estava o Departamento de Estado dos Estados Unidos. Aramayo exibiu então uma nota do secretário de Estado, John Hay, ao embaixador norte-americano em La Paz recomendando o “Bolivian Syndicate”. A nota dizia que a companhia “era constituída de homens da mais alta posição e de grande fortuna", figurando entre eles Elmin Roosevelt, primo do presidente Theodore Roosevelt. No presente caso da nacionalização do gás, não se sabe se há alguma nota, mas as manipulações norte-americanas são evidentes. As manobras obliqüas no sentido de atritar seriamente as boas relações entre Brasil e Bolívia e fazer o governo brasileiro capitular, no entanto, felizmente até agora não estão surtindo efeito.

Interpretação muito lata

Assim como hoje, quando apareceu o “Bolivian Syndicate” o governo brasileiro, longe de se intimidar, ampliou sua atuação no conflito. O primeiro passo foi denunciar que o Acre havia sido cedido ao capitalismo norte-americano, o que representava sério perigo para a América do Sul. Aramayo, evidentemente, reagiu. “Temem o imperialismo ianque e não temem o imperialismo brasileiro. Comentam a ‘Doutrina de Monroe’ como significando ‘a América para os norte-americanos’ e não vêem que o sistema invasor adotado pelo Brasil nos países seus vizinhos deixa perfeitamente claro que sua divisa é ‘a América do Sul para os brasileiros'”, disse ele. Mas o governo brasileiro, que tinha no Ministério das Relações Exteriores o Barão do Rio Branco, denunciou oficialmente o tratado de limites de 1867 com a Bolívia e declarou litigioso o território do Acre, negando à La Paz o direito de negociá-lo.

Em nota ao governo boliviano, o Barão do Rio Branco declarou que o caso “se assemelha às concessões da África e é indigno de nosso continente”. E acrescentou: “O Brasil tem dado, até o presente, uma interpretação muito lata ao tratado de 1867; havendo, porém, o governo boliviano alienado, em favor de um sindicato estrangeiro, direitos já concedidos no território do Acre, o Brasil crê no seu dever sustentar a verdadeira interpretação do tratado e defender, em conseqüência, como fronteira, o paralelo 10° 20°, que corre da foz do rio Beni para o Oeste, até encontrar o território peruano.” Logo depois da decisão do Barão do Rio Branco, de enfrentar corajosamente a situação, o “Bolivian Syndicate” vendeu ao Brasil os mesmos direitos pelo mesmo preço que lhe vendera antes o governo boliviano.

Boicote dos liberais à Petrobras

No dia 23 de julho de 1903, o Barão do Rio Branco propôs aos bolivianos, “como compensação pelo imenso e rico território que haviam perdido”, a construção de uma ferrovia no território da Bolívia, fornecendo o Brasil os fundos necessários para o empreendimento. É o que está declarado no “Trato de Petrópolis”, de 17 de novembro daquele ano. Daí em diante, as relações entre o Brasil e a Bolívia foram amistosas, mas marcadas por outras tentativas de envenená-las. “Para a construção desta estrada de ferro (Corumbá-Santa Cruz de la Sierra), a diplomacia fez mais curvas do que os próprios engenheiros”, disse certa vez um diplomata brasileiro. Quando começou a “Guerra do Chaco”, em 1932, o Brasil ainda tinha obrigações não cumpridas com a Bolívia. A ajuda para o “plano de construções ferroviárias”, quase trinta anos depois do “Tratado de Petrópolis”, não havia saído do papel.

Vários negociações depois, o caso chegou ao “Tratado sobre a vinculação ferroviária” e ao “Tratado sobre a saída e o aproveitamento do petróleo boliviano”, assinados no dia 25 de fevereiro de 1938. Logo depois, uma campanha contra os “Tratados” se levantou na Bolívia, alardeando o Brasil como um fantasma imperialista na América do Sul. Quando o presidente Getúlio Vargas disse, se referindo à construção da estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra, que haveria uma “marcha para o Oeste”, seu pensamento logo foi deturpado. A ferrovia só foi inaugurada em 1955, e a área de reserva de petróleo para o Brasil estabelecida nos “Tratados de 38” não foi explorada por conta do boicote à Petrobras promovido pelos liberais brasileiros e bolivianos em favor da Standard Oil.

Súbito "nacionalismo mineral"

Na luta para envenenar as relações entre os povos do Brasil e da Bolívia, os monopólios privados que dominam a indústria do petróleo encontraram aliados nos dois países. Quem ler os jornais daqueles tempos, verá uma incrível semelhança com o noticiário de hoje. Em ambos os casos, as deturpações dos fatos são acintosas. Aqui entra um aspecto perverso do problema: o estigma pega fácil e dura muito, muito tempo, independentemente dos esforços do condenado para retomar a linha certa. Infelizmente, o legado dos contratos assinados pelos ex-presidentes Gonzalo Sánchez de Lozada e Fernando Henrique Cardoso (FHC) é a tragédia a que assistimos agora. São documentos ilegais concebidos segundo os cânones do mercado-Deus, perante os quais o Estado é insignificante, mas apresentados como pontes rompidas unilateralmente pelo governo boliviano.

Para esconder a tragédia, os devotos dessa crença fingem conversão a um súbito "nacionalismo mineral" e pregam que o governo boliviano nos usurpa inexoravelmente. Por isso, segundo esses prelados, precisamos fechar todas as portas e janelas rapidamente antes que os bolivianos malvados nos saqueiem por completo. Todo mundo sabe, no entanto, que o interesse é unicamente embaralhar o projeto de reeleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva e desmoralizar os governos progressistas da Bolívia e da Venezuela. Mas Lula não é beócio. É provavelmente o mais capaz entre todos os presidentes que o Brasil já teve desde o fim da ditadura militar. Mais que tudo isso, o mérito maior de Lula é ter compreendido o seu tempo. Goste-se ou não, faliu a idéia neoliberal. Goste-se ou não, o mundo regido pelo mercado-Deus desabou. Lula entendeu isso direito. Não tentem constrangê-lo com velhos slogans neoliberais. Não cola.

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