Após onda de violência, polícia de SP volta a agir como os esquadrões da morte

Aproveitando-se do medo e da perplexidade da população de São Paulo, que chocou-se diante da onda de violência que atingiu o Estado nos últimos dias, a polícia paulista volta a lançar mão de práticas que foram comu

A chamada "opinião pública" certamente ainda não está preparada para debater o assunto, como mostra pesquisa do Datafolha publicada hoje no jornal Folha de S. Paulo. Segundo a pesquisa, 56% dos paulistanos apóiam a pena de morte.

Chocada com a onda de violência patrocinada pela facção criminosa PCC, a população de São Paulo parece disposta a aceitar que o combate à criminalidade se faça com a volta de argumentos totalitaristas e reacionários do tipo "mata primeiro e pergunta depois" e "bandido bom é bandido morto", frases que fizeram sucesso nos obscuros anos da ditadura militar, quando o aparato repressivo da polícia agia livremente, adotando julgamentos sumários contra qualquer pessoa que ousasse incomodar a ordem estabelecida.

Este cenário de terror voltou a se instaurar na guerra declarada à facção criminosa PCC. Em poucos dias, a polícia de São Paulo matou 71 pessoas. Apenas entre a noite de segunda-feira e a manhã de ontem, em cerca de 12 horas, foram 33 mortes.

Apesar de não revelar a identificação dos mortos, a Secretaria da Segurança Pública afirma que todos eles tinham ligação com o grupo criminoso ou estavam relacionados diretamente aos atentados nos últimos dias. Mas muitas testemunhas, que não aceitam se identificar,  desmentem esta versão e alegam que em alguns casos houve fuzilamentos.

Na noite de segunda, quando o comandante-geral da PM, coronel Elizeu Eclair Teixeira Borges, fez um pronunciamento em que pediu calma à população, o número de pessoas mortas sob a acusação de participação em ataques às forças de segurança era de 38. De segunda para terça, em pouco mais de 12 horas, houve um aumento de 87% nas mortes cometidas pelas polícias em todo o Estado de São Paulo.

Ainda segundo o governo, até segunda-feira 91 pessoas haviam sido presas por suspeita de ligação com a onda de violência; ontem, esse número era de 115. Isso significa que as polícias, em apenas 12 horas, realizaram 21% do total de prisões efetuadas em todos os dias anteriores de violência (sexta, sábado, domingo e segunda), enquanto as mortes subiram 87%.

Segundo a contabilidade oficial, os mortos já chegam a 115 (71 acusados de ligação com a facção, 23 PMs, seis policiais civis, três guardas municipais, oito agentes penitenciários e quatro cidadãos). Em rebeliões, houve 17 mortos, o que totaliza 132.

Desde domingo, a imprensa pede à Segurança Pública a lista completa com os nomes e a ficha criminal das pessoas que, segundo o próprio órgão, tinham participação nos ataques e foram mortas pela polícia. Até ontem, a resposta foi a mesma: "Estamos consolidando os dados, que serão divulgados em breve".

Ontem, a reportagem do jornal Folha de S. Paulo pediu um pronunciamento do secretário da Segurança Pública, Saulo de Castro Abreu Filho, sobre a letalidade policial. Segundo seus assessores, ele não falaria sobre o aumento de mortos pelas polícias "para evitar o uso político de uma fala dele".

Até agora, passadas mais de 24 horas após o PCC ter determinado, de dentro de prisões de segurança máxima e com o uso do telefone celular, o fim da afronta ao Estado, a Segurança Pública não responde também às seguintes questões: o local exato de cada uma das 71 mortes nos "confrontos", como elas ocorreram, se os feridos pela polícia foram encaminhados a hospitais ou se os corpos ficaram nos locais dos embates para a realização de perícia, quantas armas de policiais e de acusados foram apreendidas para exame de balística e a ficha de antecedentes criminais dos mortos.

Na madrugada, às escuras

Durante a madrugada de ontem, a Folha percorreu todas as regiões da capital e parte da região metropolitana. Em muitos lugares, principalmente na zona norte, onde existe uma grande concentração de casas de PMs, vários carros da corporação estavam totalmente apagados, o que contraria o regulamento dos policiais. Apesar dos 33 mortos em "confrontos", a reportagem não conseguiu chegar a tempo para fazer imagens dos corpos das vítimas em nenhum dos casos.

Somente no bairro de São Mateus, na zona leste, entre as 22h15 de segunda e as 3h de ontem, cinco pessoas "que teriam reagido à abordagem", segundo homens da PM, foram mortas. Em Osasco (Grande São Paulo), dois acusados de atirar contra o fórum da cidade também foram mortos pela PM. Outros dois, que teriam jogado uma granada contra uma base comunitária da PM, foram perseguidos e baleados na vizinha Carapicuíba; um deles morreu. A Rota matou outros dois homens em Guarulhos. Eles estariam com coquetéis molotov.

Para o professor da faculdade de direito e diretor clínico do Programa de Direitos Humanos da Universidade de Harvard, James Cavallaro, 43, "apesar de a polícia ter sofrido os ataques terríveis dos últimos dias, isso não dá carta branca para matar quem quiser e como quiser".

Segundo Cavallaro, que dirigiu no Brasil durante sete anos a Human Rights Watch, vários colegas de universidade, uma das mais importantes do mundo, têm perguntado sobre o ocorrido em São Paulo nos últimos dias, mas não conseguem entender completamente os crimes ligados ao PCC.

"Todos esses casos de morte, os cometidos pelo PCC, assim como os cometidos pelas forças de segurança, precisam ser investigados. O sentimento de vingança é normal. As forças da lei não podem agir com espírito vingativo. É preciso ficar dentro da lei, mesmo em tempos difíceis. Caso contrário, a polícia vira mais uma quadrilha, uma gangue, um grupo armado agindo sem lei", disse Cavallaro.

Segundo o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo César Pinho, "o Ministério Público não compactua com execuções sumárias e os excessos das corporações serão investigados".

Mãe, filho e noivo fuzilados

Dois episódios revelam a que ponto chegou a truculência da polícia.

Num deles, um jovem de 22 anos foi morto por policiais sem nenhum motivo aparente. Segundo moradores do Jardim Filhos da Terra, na zona norte da cidade, anteontem o jovem Ricardo Flauzino foi, como sempre, esperar pela noiva no alto da escadaria que sobe da avenida Antonello da Messina para o conjunto de apartamentos do Filhos da Terra. A moça desembarcaria do ônibus e, protegida pelo noivo, seria levada até sua casa.

Sentado, Flauzino esperava, quando, de repente, de um veículo da Força Tática da PM, desceram pelo menos seis homens. Estavam encapuzados, a farda oculta por blusões negros. Sem nenhum motivo aparente, os PMs balearam Flauzino, "rapaz que nunca andou armado, não bebia e não se envolvia nas correrias dos bandidos do bairro", na definição de um morador.

A polícia nega que tenha sido responsável pela morte do rapaz.

O assassinato de Flauzino revoltou os moradores do bairro, que organizaram um protesto no qual foi queimado um ônibus. Um programa de TV que costuma fazer coberturas jornalísticas em parceria com a polícia, noticiou o protesto como sendo uma iniciativa de "apoiadores do PCC", o que revoltou ainda mais a população local.

Em outro episódio, a mãe e o irmão de Marcelo Vieira, o Capetinha, um dos líderes do PCC, foram executados a tiros na zona norte de São Paulo por homens que se identificaram como policiais. Maria Aparecida Floriano da Silva, de 63 anos, e seu filho Eduardo Floriano da Silva, de 23 anos, foram executados na porta de casa.

Segundo testemunhas, na madrugada de ontem, os supostos policiais bateram na porta da casa da mãe de Capetinha. A obrigaram a ficar de joelhos e atiraram. Em seguida, mataram o rapaz.

Na Internet, PMs espalham mensagens de vingança

O clima de vingança que tomou conta da polícia paulista, pode ser observado também na Internet. Os recados relatados nos dois últimos dias na página do Orkut, em comunidades que envolvem discussões sobre a guerra civil que ocorreu em São Paulo no final de semana, demonstram que supostos policiais civis e militares estão se unindo com o objetivo de vingar as mortes dos colegas.

Numa comunidade criada exatamente com esse objetivo, que não tem denominação e usa como símbolo uma caveira, há uma espécie de convocação que vem sendo espalhada para milhares de usuários. Diz o texto: "se vc é da Capital, junte-se a nós. Estamos formando grupos. É daquele jeito. Teremos apoio dos que estão de serviço e deveremos apoiar os irmãos que estarão de folga e na atividade. A investigação deverá ser branda e com BO de autoria desconhecida".

Na página da comunidade sobre a Rota, que possui mais de 8 mil membros (grande parte policiais), foram deixados dezenas de tópicos e mensagens incentivando os policiais a vingarem as mortes dos colegas. "Todo mundo sabe quem são os líderes do PCC, pelo que vi no jornal eles estão presos, por que alguém não vai lá e mata eles? Talvez não resolva, mas com certeza abalaria e muito a estrutura desse tal crime organizado", afirma Tatiane Eleotério, de Rondônia.

"Estou de luto e indignado com a morte dos policiais, temos que responder à altura da mesma forma, é hora de sair para caçar", diz o recado de Junei Sales, de Guarulhos (SP). "Aos guerreiros da Rota espero que vocês lavem as ruas de Sampa com o sangue desses filhos de uma p… prá vingar os guerreiros abatidos",afirma Alexandre "Pexi" de Oliveira.

"Estou torcendo pra liberarem uma lei para a polícia poder matar esses vagabundos.. O povo não pode se abater… viva o massacre do Carandiru. Devia ter pelo menos um por ano desse aí", incentiva Juninho Mocca, de São Paulo (SP).

Numa outra comunidade, criada com o nome de "Cabo Bruno, o matador", Moisés Menezes, de Curitiba (PR), vai mais longe: "creio que se organizassem grupos de justiceiros…a coisa ia melhorar um pouco! Lembram do tempo do cabo Bruno? Os malacos tinham medo só de ouvir o nome dele! Ele apavorava, arrancava a cabeça do desgraçado do bandido, traficante, estuprador! Tem que voltar a ter homens assim! Também sei que violência gera violência, mas também creio que violência se combate com violência".

Esquadrões da morte

Lendo tais mensagens não há como não fazer um paralelo com uma prática antiga que tomou maior fôlego a partir dos anos 60, com a ditadura militar. De acordo com o professor e escritor José Cláudio Souza Alves (autor do livro Dos Barões ao Extermínio), foi na Baixada Fluminense (RJ), em 1967, que começou a se multiplicar a prática de formação de grupos de extermínio por policiais militares e civis, contratados por empresários e comerciantes para "limpar a área" de bandidos e pessoas consideradas inconvenientes às elites locais. Esses grupos ficaram conhecidos nacional e internacionalmente como "esquadrões da morte".

Nos anos 80 grupos formados por policiais, ex-policiais e civis continuaram formando grupos de extermínio. Foi nessa época que começaram a surgir cartazes com inscrições de um tal "mão branca" ao lado de cadáveres de supostos fora-da-lei. Mas a matança jamais se limitou a bandidos comuns, muitas das vítimas eram jovens e trabalhadores sem qualquer passagem pela polícia. Ou seja, matava-se para impor o terror como instrumento de opressão.

Os esquadrões não agiam somente no RJ, mas também em outros estados, sobretudo em SP. Em seu livro Rota 66 – A História da Polícia que Mata, o jornalista Caco Barcellos revela que a mesma ideologia e o mesmo modus operandi estavam vivos e arraigados na corporação policial até o início dos anos 90, quando foi lançada a primeira edição do livro. Passados quase quinze anos desde esta primeira edição, a recente onda de violência em SP e o fato do maior estado da federação ter sido entregue aos cuidados de um governador que foi parceiro fiel da ditadura militar podem fazer com que a trágica experiência dos esquadrões da morte volte com ainda mais truculência.

Da redação,
Cláudio Gonzalez