Álvaro Cunhal, comunista e humanista, um ano depois

Nesta terça-feira, 13 de junho, completa-se um ano da morte de Álvaro Cunhal. O dirigente histórico do Partido Comunista Português tinha 92 anos, 72 deles transcorridos na militância, na clandestinidade ou no cárc

Um milhão e meio de pessoas participaram da despedida de Álvaro Cunhal durante o dia 13 de junho de 2005 quando o seu féretro percorreu as ruas de Lisboa. Muitas mais, em todo o mundo, prestaram a última homenagem a quem se dedicou por mais de 70 anos à luta perseverante dos comunistas, dos quais a metade como Secretário Geral do PCP. Foi um herói em Portugal e um modelo para todos os comunistas do mundo, que construiu atentamente a personalidade forte e, ao mesmo tempo, sensível a todos os aspectos dos anseios da humanidade, do homem coerente e do dirigente capaz de transmitir segurança aos seus seguidores. A segurança inspirada na absoluta convicção de que a luta bem fundamentada permitirá à humanidade “desenvolver as suas melhores potencialidades e contrariar tendências, instintos e até resultados de uma influência negativa que recebeu”, como escreveu em 1990 no jornal O Independente, de Lisboa.

Jornalistas e escritores de diferentes quadrantes ideológicos o entrevistaram, muitos com a preocupação (sempre frustrada) de encontrar uma brecha para desarmar a sua firmeza. Acusaram-no de repetir uma eterna “cassete” que impede a possibilidade de diálogo, e muitos se sentiram honestamente obrigados a reconhecer que a “cassete” era transmitida pelos seus opositores que não pretendiam o diálogo, mas sim o domínio das suas posições ideológicas de direita. Quem, ao contrário, soube ouvi-lo reconheceu a sua capacidade e coerência na defesa intransigente da liberdade dos povos e da criatividade do ser humano ligado aos demais por laços de solidariedade, amor, amizade e respeito. Ao ser entrevistado por Catarina Pires, disse: “Os comunistas não têm uma concepção ideológica separada de uma intervenção prática. Ao contrário da religião, não aceitamos o conformismo e a resignação. Não estamos a lutar por uma concepção; estamos com uma concepção, a lutar pela solução de problemas concretos da humanidade e por uma transformação da sociedade que os resolva”.(in “Cinco Conversas com Álvaro Cunhal”, 1999, ed. Campo das Letras).

Ao longo de 24 anos a jornalista Maria João Avilez, do jornal O Expresso, de Lisboa, fez uma dezena de entrevistas a Álvaro Cunhal, sempre registrando a sua própria posição ideológica oposta, filiada à direita portuguesa. Tentou, sem êxito, de muitas maneiras mesclar assuntos relacionados com a privacidade do entrevistado com os temas políticos abordados. Aprendeu com ele que o individuo é independente do porta-voz de um partido e percebeu que Álvaro Cunhal dominava completamente a sua função política separada da condição pessoal de ser humano, negando-se a transmitir em uma entrevista política as suas características particulares, sempre presentes nos relacionamentos com amigos e camaradas. No livro “Conversas com Álvaro Cunhal”, editado por Temas e Debates, Lisboa, em 2004, revela-se a transformação da autora ao longo dos anos, conquistada pela sabedoria e firmeza daquele homem irônico, mas sempre educado e respeitoso.

A admiração pela grandeza do dirigente comunista, manifestada por homens e mulheres que se mantiveram como adversários políticos ao longo das últimas três décadas da sua vida, confirmou a plena aceitação da figura de Álvaro Cunhal como um expoente da cultura portuguesa, herói do seu povo. E explica a maior manifestação de massas no enterro de uma personalidade portuguesa.

Quem privou da companhia de Álvaro Cunhal reconhece que a sua grandeza era sempre revelada por gestos e palavras subtis que traduziam profundos conceitos em expressões simples e concretas. A segurança resultante do conhecimento profundo adquirido através de estudos que complementavam a vivência na permanente militância e na observação continuada dos seres humanos, deixava-o à vontade para dizer: “Tenho participado em sessões em que me perguntam : nunca teve dúvidas na vida? E a minha resposta é que tive e tenho dúvidas. E se as não tivesse tido e as não tivesse é porque não pensava. Qualquer pessoa, perante a complexidade dos problemas, perante a vida, as transformações e as mudanças ao longo dos anos, se não aprende, se não duvida, se não procura soluções, é porque tem a cabeça parada. A dúvida é uma abertura, e uma abertura também à compreensão da dúvida dos outros” (in jornal “O Público”, Lisboa, 1996.

No livro “O Partido com Paredes de Vidro”, (ed. Avante!, Lisboa, 1985) que foi importante esteio para os comunistas portugueses entenderem os processos de autofagia que minou a União Soviética e tantos partidos comunistas ameaçando a luta mundial em defesa dos povos, encontramos explicitadas as fórmulas de dureza necessária à disciplina para que a luta seja vitoriosa e também a importância dos sentimentos humanos que coroam aqueles objetivos. “Amar o sol, o ar livre, a natureza, a terra e o mar, o ar e a água, as plantas e as flores, os animais, as pedras, a luz, a cor, o som, o movimento, a alegria, o riso, o prazer, é da própria natureza do ser humano – um ser indissociável do planeta onde nasceu e onde vive”. Naquela obra política o autor apresentou a sua síntese, de poeta e lutador, de artista que sonha e constrói, de homem afetuoso e dirigente intransigente, qualidades que inspiram a maior confiança nos seus seguidores.

A sociedade portuguesa, com toda sua diversidade ideológica, que experimentou o fascismo por meio século, mas se transformou com o 25 de Abril democratizando-se e humanizando-se, foi capaz de admirar e incorporar no seu patrimônio artístico a obra romanceada que Álvaro Cunhal produziu sob o pseudônimo de Manuel Tiago. O filme “Cinco dias e cinco noites” realizado por José Fonseca e Costa, baseado no romance homônimo escrito na prisão, mereceu os maiores elogios da critica cinematográfica e foi premiado sem qualquer preconceito, tratando-se de uma das muitas estórias da clandestinidade extraídas da vida dos comunistas portugueses. Assim também o romance “Até Amanhã, Camaradas” foi transposto para um filme realizado por Joaquim Leitão e transmitido por canal de televisão, revelando trechos da luta clandestina comunista e o importante conteúdo ideológico que a dominou nos quarenta anos em que enfrentou o sistema fascista em Portugal. Nas duas obras literárias, como em outras divulgadas no fim da vida de Álvaro Cunhal, encontram-se enlaçadas as preocupações políticas e as observações e cuidados com os seres humanos, ambas objetos da luta revolucionária.

A integração da observação racional com o sentimento se tornou possível na obra global de Álvaro Cunhal que afirmava: “Até quando estou a falar de política, fala o coração” (in programa radiofônico na TSF, Lisboa, 1990).