Workers World: O papel dos EUA em Darfur

O que está por detrás da campanha "Parar o genocídio no Darfur" que neste momento percorre os Estados Unidos de leste a oeste? De um momento para o outro deparamo-nos com organizações universitárias desdobrando-se na organiza&ccedi

Dizem repetidamente que "alguma coisa" tem que ser feita. "Forças Humanitárias" e forças americanas de "manutenção de paz" devem ser imediatamente destacadas por forma a estancar a "limpeza étnica." Tropas das Nações Unidas ou do Pacto Militar do Atlântico Norte (Otan) devem ser utilizadas para acabar com o "genocídio." O governo americano tem a "responsabilidade moral de prevenir outro Holocausto".

A indignação é fomentada através dos meios de comunicação com histórias sobre violações em massa ou fotos exibindo refugiados em desespero total. A acusação é que dezenas de milhares de africanos estão sendo mortos por milícias árabes, sustentadas pelo governo sudanês. O Sudão, por sua vez, é rotulado como um "estado terrorista" e um "estado falido ". Até mesmo em manifestações contra a guerra têm sido distribuídos cartazes apregoando "Fora do Iraque – Para o Darfur." No New York Times, anúncios de página inteira vêm repetindo o apelo.

Quem está por trás desta campanha e quais os tipos de ação que eles queram?

Um olhar superficial pelos apoiadores da campanha "Salvar o Darfur" mostra-nos o papel proeminente dos cristãos evangélicos de extrema-direita, assim como de alguns dos mais importantes grupos sionistas.

Num artigo publicado no Jerusalem Post de 27 de abril, intitulado "Judeus americanos dirigem o planejamento das ações a favor do Darfur" descreve-se o papel desempenhado por algumas das principais organizações sionistas na organização da manifestação de 30 de abril. Um anúncio de página inteira no New York Times a favor desta mesma manifestação foi assinado por algumas organizações judaicas, incluindo a UJA – Federação de Nova Iorque e o The Jewish Council for Public Affairs.

Contudo, não são apenas grupos sionistas os únicos envolvidos nestas movimentações. A manifestação foi patrocinada por uma coligação de 164 organizações, incluindo a Associação Nacional Evangélica, a Aliança Evangélica Mundial entre outros grupos religiosos, apoiadores fanáticos da invasão do Iraque decidida pela administração Bush. Uma organização evangélica baseada no Kansas, a Sudan Sunrise, deu sua contribuição organizando um jantar para 600 pessoas, fretou ônibus, forneceu oradores e empenhou-se de corpo e alma angariando fundos.

De fato, muito dificilmente poderia ter sido esta uma manifestação contra a guerra ou a favor de mais justiça social. Pouco antes da manifestação os seus organizadores tiveram uma reunião com o presidente George W. Bush. Nesta reunião o presidente pronunciou as seguintes palavras: "A sua participação é bem-vinda. Gostaria de agradecê-los pelo seu comparecimento".

As estimativas iniciais apontavam para mais de 100 mil manifestantes. Ao reportar "vários milhares", entre 5 a 7 mil participantes, numa manifestação majoritariamente branca, a cobertura midiática não poderia ter sido mais generosa e desproporcionada dado o escasso número de participantes — em grande medida centrada nas celebridades que aí proferiram discursos, como o ator George Clooney. Democratas e Republicanos de primeiro plano deram a sua bênção, incluindo o senador Barack Obama (Democrata), a líder das minorias na Câmara dos Representantes Nancy Pelosi (Democrata, estado da Califórnia), a secretária-adjunta para os Assuntos Africanos Jendayi Frazer e o governador do estado de New Jersey, Jon Corzine, também conhecido por desembolsar 62 milhões de dólares dos seus próprios bolsos para a sua eleição.

Os grandes meios de comunicação deram mais proeminência a esta manifestação do que alguma vez chegaram a dar à manifestação de 300 mil contra a guerra ocorrida no dia anterior em Nova York ou às gigantescas manifestações a favor dos direitos dos imigrantes ocorridas por todos os Estados Unidos no dia imediatamente a seguir àquela.

O embaixador dos Estados Unidos nas Nações Unidas, John Bolton, assim como o anterior e a atual secretária de Estado, General Colin Powell e Condoleezza Rice, o General Wesley Clark ou o primeiro-ministro britânico Tony Blair, todos eles se pronunciaram a favor da intervenção no Sudão.

Estes importantes arquitetos da política imperialista muitas vezes referem-se a um outro modelo quando apelam a esta intervenção: a bem sucedida guerra "humanitária" contra a Iugoslávia, que estabeleceu uma administração Otan-americana em Kossovo após a maciça campanha de bombardeio

O Museu do Holocausto em Washington emitiu um "alerta de genocídio" — o primeiro de sempre — e 35 líderes cristãos evangélicos subscreveram uma petição solicitando ao presidente George Bush o envio de tropas americanas para o Darfur. Ao mesmo tempo, um currículo especial foi criado a nível nacional para gerar uma base social de apoio à intervenção dos Estados Unidos entre os estudantes.

Muitas têm sido as organizações não-governamentais (ONG) subsidiadas pelo National Endowment for Democracy (NED) a juntarem-se à campanha "Salvar o Darfur" e vozes tidas como liberais tais como Amy Goodman da organização Democracy Now, ou Rabbi Michael Lerner da TIKKUN e do Human Rights Watch deram contribuiram.

Ação diversionista do desastre no Iraque

A invasão criminosa e os bopmbardeios maciços do Iraque, a destruição das suas infra-estruturas deixando populações inteiras sem água nem luz, ou as fotos atrozes de militares americanos aplicando tortura na prisão de Abu Ghraib, geraram protestos generalizados. No auge dos protestos, em setembro de 2004, o então secretário de Estado General Colin Powell viajou ao Sudão para ali anunciar que o crime do século — "um genocídio" — acontecia naquele momento, naquele exato local. A solução então encontrada pelos Estados Unidos resumiu-se na exigência feita às Nações Unidas no sentido de se imporem sanções a um dos países mais pobres do mundo ou no envio de tropas de "manutenção de paz" americanas.

No entanto, os outros membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas não se mostraram dispostos a aceitar este ponto de vista, nem tão-pouco as "evidências" alegadas pelos Estados Unidos ou o plano de ação proposto.

A campanha contra o Sudão avançou mesmo quando era mais do que evidente que a invasão do Iraque pelos Estados Unidos assentava num embuste total. Os mesmos meios de comunicação que se esforçaram por dar credibilidade aos Estados Unidos quanto à justiça da invasão do Iraque, baseados no argumento de que este país possuía "armas de destruição maciça", mostram-se agora uma vez mais dispostos a engrenar nesta nova impostura ao relatar os "crimes de guerra" cometidos por forças Árabes no Sudão.

A campanha do Darfur atinge vários objetivos caros à atual agenda política do imperialismo americano. Por um lado, persiste na tentativa de demonizar os povos árabes e os muçulmanos. Por outro, desvia as atenções da catástrofe humanitária resultante de uma guerra brutal e subseqüente ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, que tantas centenas de milhares de vidas tem ceifado e estropiado.

É ainda uma tentativa para desviar as atenções do mundo relativamente ao financiamento e apoio dos Estados Unidos à guerra israelense contra o povo palestino.

Não menos importante, abre caminho ao poder corporativo americano nos seus desígnios de controlar toda a região.

O interesse americano no Sudão

O Sudão é o maior país africano em área. Está situado estrategicamente no Mar Vermelho, imediatamente a sul do Egito, e faz fronteira com outros sete países africanos. Aproximadamente do tamanho da Europa Ocidental, a sua população soma apenas 35 milhões de pessoas.

Correspondendo à região ocidental do Sudão, o Darfur tem uma dimensão semelhante à da França e uma população de 6 milhões de habitantes.

Os recursos naturais recentemente descobertos no Sudão fazem deste país alvo privilegiado dos interesses corporativos americanos. Estima-se que as suas reservas petrolíferas rivalizem com as da Arábia Saudita, já para não falar dos abundantes depósitos de gás natural. Como se não bastasse, o terceiro maior depósito de urânio com alto teor e o quarto maior depósito de cobre do planeta situam-se no seu território.

No entanto e ao contrário da Arábia Saudita, o governo sudanês tem mantido a sua independência em relação a Washington. Incapaz de controlar a política petrolífera sudanesa, tudo tem feito para deter o desenvolvimento da exploração deste importante recurso natural. Já a China tem trabalhado em conjunto com o Sudão, providenciando a tecnologia necessária à sua exploração, desde perfurações e bombeamento, à construção de um oleoduto — grande parte do petróleo sudanês é ainda exportado para a China.

A política americana desenvolve-se entre o boicote às exportações de petróleo por meio de sanções e a inflamação de antagonismos nacionais e regionais. Em particular nos últimos vinte anos, o imperialismo americano tem apoiado um movimento separatista na região sul do país, precisamente o local no qual foi pela primeira vez descoberto petróleo. Esta longa guerra civil não fez mais do que absorver uma parte considerável dos recursos do governo central. Quando um acordo de paz foi por fim assinado, os Estados Unidos mudaram de imediato as suas atenções para a zona ocidental do Sudão, o Darfur.

Mais recentemente, um acordo similar entre o governo sudanês e os grupos rebeldes do Darfur foi ainda assim rejeitado por um único grupo, pelo que as hostilidades continuam. Os Estados Unidos arrogam-se o papel do mediador neutro e persistem na pressão exercida sobre Cartum com vista a concessões suplementares, mas "devido à parcialidade dos seus aliados africanos mais próximos, e em particular porque ajudaram no treino de rebeldes do Exército de Libertação do Sudão (SLA) e do Movimento para a Justiça e Igualdade (JEM), a reação violenta de Cartum não se fez esperar". (www.afrol.com)

O Sudão tem uma das populações mais diversificadas do mundo. Mais de 400 grupos étnicos possuem linguagem e dialetos próprios. O árabe é a única língua comum. A grande Cartum, a maior cidade do país, tem uma população de cerca de 6 milhões de habitantes. Aproximadamente 85% da população sudanesa vive de agricultura de subsistência e pastoreio.

Os grandes meios de comunicação americanos são unânimes na descrição simplista da crise no Darfur como uma série de atrocidades cometidas pelas milícias Jan jawid, apoiadas pelo governo central de Cartum. Esta é descrito como uma agressão "árabe" contra populações "africanas".

Trata-se de uma total distorção da realidade. Em The Black Commentator de 27 de outubro de 2004, destaca-se: "Todas as partes envolvidas no conflito — sejam elas referidas como 'árabes' ou 'africanas', são igualmente negras e nativas, muçulmanas e locais. Além dos muitos dialetos locais, toda a população do Darfur fala o árabe. São todos muçulmanos sunitas."

Seca, fome e sanções

A crise no Darfur tem raízes em lutas inter-tribais. Tem-se desenvolvido uma luta desesperada em relação à água cada vez mais escassa e aos direitos de pastagem numa vasta área do Norte de África que tem sido atingida por anos de seca e fome crescente.

Na região de Darfur existem mais de 35 tribos e grupos étnicos. Cerca de metade da população pratica a agricultura de subsistência e a outra metade são pastores semi-nômades. Durante centenas de anos as populações nômades apascentaram os seus animais na vastidão das planícies, partilhando poços com os agricultores. Há mais de 5.000 anos subsistem civilizações nesta terra fértil, tanto na parte ocidental do Darfur como mais para Leste, ao longo do Rio Nilo.

Devido à seca e ao imenso deserto do Saara que não cessa de ganhar terreno, não existe mais terra arável ou terra para pastoreio em quantidade suficiente naquele que tem sido o celeiro da África. A irrigação e a exploração dos abundantes recursos existentes no Sudão poderia muito bem ser a solução para todos estes problemas. Mas as sanções americanas ou as intervenções militares não os resolverão.

Muitas pessoas, em particular crianças, têm morrido no Sudão devido a doenças perfeitamente curáveis e fáceis de prevenir devido a um ataque com mísseis Cruise ordenado pelo presidente William Clinton, em 20 de agosto de 1998, à fábrica de medicamentos El Shifa, em Cartum. Esta fábrica, que produzia medicamentos baratos para tratar a malária e a tuberculose, fornecia 60% dos medicamentos disponíveis no Sudão.

Os Estados Unidos afirmaram que o Sudão operava ali uma "instalação orientadas para a produção do gás tóxico VX". Nunca foram apresentadas provas concretas dessa acusação. Estas instalações médicas básicas, totalmente destruídas por 19 mísseis, não foram reconstruídas, nem o Sudão recebeu um centavo de compensação.

O papel da Otan e da Onu no Sudão

Atualmente há 7.000 soldados da União Africana em Darfur. Seu apoio técnico e logístico é fornecido pelos Estados Unidos e pela Otan. Além disso, milhares de funcionários das Nações Unidas administram campos de refugiados com centenas de milhares de deslocados pela seca, fome e guerra. Todos estas forças externas fazem mais do que providenciar o tão necessário sustento. Elas são uma fonte de instabilidade. Tal como aspirantes a conquistadores capitalistas o fizeram ao longo dos séculos, eles conscientemente procuram açular grupos uns contra os outros.

O imperialismo americano está comprometido de corpo e alma na região. A oeste de Darfur, no vizinho Tchade e segundo informações do próprio Departamento de Defesa americano, os Estados Unidos organizaram no ano passado um exercício militar internacional com uma envergadura jamais vista na África desde a Segunda Guerra Mundial. O Tchade foi uma colônia francesa e não só as tropas deste país mas também as dos Estados Unidos estão diretamente implicadas no financiamento, preparação e municiamento das forças armadas do chefe militar do Tchade, Idriss Deby, o qual por sua vez tem apoiado grupos rebeldes no Darfur.

Durante mais de meio século o Sudão foi administrado pelo Reino Unido, que debateu-se sempre com uma grande resistência. A política colonial britânica fundava-se nas táticas do "dividir para reinar" e na manutenção das suas colônias numa situação de subdesenvolvimento e isolamento crônicos por forma a facilitar a pilhagem dos seus recursos.

Substituindo as várias potências coloniais europeias em numerosos locais do mundo, também o imperialismo americano tem vindo a sabotar nos últimos anos a independência econômica dos países que tentam agora emergir do subdesenvolvimento herdado da sua condição colonial. Suas principais armas econômicas tem sido sanções combinadas com as exigências de "ajustes estruturais" feitas pelo Fundo Monetário Internacional, controlado pelos Estados Unidos. Em troca de empréstimos, os governos-alvo são obrigados a cortar seus orçamentos para o desenvolvimento de infra-estruturas.

Como podem exigências por sanções de organizações ocidentais, que agravam o subdesenvolvimento e isolam, resolver qualquer destes problemas?

Washington tem usado frequentemente o poder tremendo que possui no Conselho de Segurança das Nações Unidas para alcançar resoluções favoráveis ao envio de tropas americanas a outros países. Nenhuma delas foi para missões humanitárias.

Em 1950 e sob a égide das Nações Unidas, tropas americanas invadiram a Coréia numa guerra que resultou na morte de mais de 4 milhões de pessoas. Ainda sob a mesma bandeira, conseguiram ocupar a península coreana e dividi-la durante mais de 50 anos.

Sob a pressão dos EUA, em 1961 foram instaladas tropas da ONU no Congo, onde desempenharam um papel fundamental no assassinato de Patrice Lumumba, o primeiro primeiro-ministro do país.

Em 1991, os EUA conseguiram mesmo obter um mandato das Nações Unidas para o bombardeio maciço da totalidade das infra-estruturas civis iraquianas, incluindo instalações de tratamento de água, estruturas de irrigação e centros de processamento de gêneros alimentares — e os 13 anos de sanções impostas ao Iraque traduziram-se na morte de mais de 1,5 milhão de iraquianos.

Na Iugoslávia e no Haiti, as tropas das Nações Unidas tem sido uma cobertura para a intervenção e ocupação americana e européia — não para a paz ou a reconciliação.

As potências imperialistas dos Estados Unidos e da Europa são responsáveis pelo comércio genocida de escravos que dizimou a África, pelo genocídio da população indígena das Américas pelas guerras e ocupações coloniais que saquearam três quartos do planeta. Foi ainda o imperialismo alemão o responsável pelo genocídio do povo judeu. Apelar à intervenção militar destas mesmas potências como resposta a conflitos entre o povo de Darfur é ignorar cinco séculos de história.

[*] Sara Flounders esteve no Sudão logo após o bombardeamento das instalações farmacêuticas de El Shifa, em 1998, juntamente com John Parker, numa delegação de investigação criada pela International Action Center, dirigida por Ramsey Clark.

O original encontra-se em http://www.workers.org/2006/world/darfur-0608/ .
Ver também: Uma advertência à África: A nova grande estratégia imperial dos EUA
Tradução realizada pelo sítio Resistir (http://resistir.info/)