Miguel Littín e a identidade latino-americana no cinema

Ícone vivo do cinema de resistência Latino-americano, Miguel Linttín é o autor de “Acta General de Chile”, cuja aventura em que esteve enredado durante a filmagem clandestina em 1985, no seu próprio país, tornou-se livro de Gabrie

Imagine-se endereçando uma mensagem a um arqueólogo do futuro, fornecendo-lhe dados sobre a realidade atual que lhe servissem de apontamentos para o entendimento de nossos dias. A Carta Maior apresenta espaço dedicado a esta inusitada empreitada, com a publicação mensal de textos de importantes intelectuais, cientistas e artistas endereçados ao Arqueólogo do Futuro.

O Novo Cinema Latino-americano: a busca da identidade perdida

Por Miguel Littín

Caro Arqueólogo do Futuro,

Se foi achado este testemunho que te encaminho, talvez também tenham sido encontrados filmes, ou fragmentos deles, retratando nossos tempos. Pois saiba, Arqueólogo do Futuro, ao assisti-los, que em nossos dias havia mais de um cinema. Havia o cinema dominante, industrial e de consumo americano, mesmo que feito em todas as partes, e havia um cinema de ruptura, que aconteceu também em toda parte e que, na América Latina, ficou conhecido como Cinema Novo. É dele que trata este meu relato.

Nunca se poderá saber onde foi escutada pela primeira vez a frase emblemática do cinema latino-americano: “Uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”. Muitos asseguram que foi em Paris, nos dias em que se decretaram os Estados Gerais do Cinema. Outros garantem que foi em Serra Maestra, em dias de revolução e sonhos de utopias não alcançadas. Ou foi no nordeste brasileiro, ou nos cumes das cordilheiras andinas da Bolívia ou no Chile Central, em frente às ondas do mar chamado Oceano Pacífico… O fato é que a famosa frase ressoou forte nas selvas, estradas, montanhas, e converteu-se em fotogramas gravados a fogo pela vontade e pelo vigor de uma geração que não teve limites para seus sonhos.

Foi, disso sou testemunha, em Viña del Mar, em 1967, que se lançou, desordenada e rebeldemente, a frase ao ar para que repercutisse na América do Sul convertida em feitos cinematográficos que mudaram para sempre a face do cinema no continente. Impulsionados por tempos de definição e mudança, cineastas reuniram-se ali para confrontar idéias, para discutir o seu presente ardorosamente, para negar o passado e projetar o futuro e, sobretudo, para aprenderem a se reconhecer nas imagens de um continente inédito, de uma cinematografia que projetava suas primeiras imagens e sons com mais vontade do que técnica, com mais força do que rigor estético, balbuciantes até, em busca de uma identidade perdida.

E foi assim, diante de nossos olhos assombrados, apertados na sala de cinema de Viña del Mar, que assistimos pela primeira vez aos mineiros da Bolívia, às maiorias devastadas pela miséria no Brasil, aos ceramistas da Argentina, aos estudantes lutando nas ruas de Montevidéu sob o som da nossa Violeta Parra, que afirmava, com a viola na mão: “gosto dos estudantes porque eles são a levedura do pão que saldará a manhã com todo seu sabor”. Também assistimos aos guerrilheiros barbados, cubanos, com estampa de santos guerreiros, descendo da Serra Maestra em Cuba; aos pequenos gigantes do carvão no Chile, cruzando as pontes do Bio Bio, desfraldando as bandeiras da esperança e da rebeldia; ao testemunho do México insurgente e revolucionário; aos lenhadores da Argentina profunda; aos camponeses e trabalhadores; aos cangaços do Brasil; às pessoas de outros ofícios; aos ignorados de uma sociedade Neocolonial. Em suma, assistimos, pela primeira vez, aos verdadeiros protagonistas de uma humanidade que, no dizer de Che Guevara, havia dito basta e começado a andar. Aquele festival de 67 foi nosso encontro com a História em um espelho recoberto talvez pela paixão e pela ira, mas um espelho, ao fim, que refletiu a luz e a sombra de uma nova História.

O fundamental ali era encontrarmo-nos e reconhecermo-nos na realidade diversa de uma América incógnita e também desconhecida. Revisamos a História, afirmamos o direito a uma cinematografia própria e plena de liberdade, aberta à experimentação, que buscasse uma nova linguagem afastada das formas e conteúdos do cinema industrial e de consumo. Concordamos em estudar formas para criar um mercado comum para o cinema latino-americano, expressando nosso direito de chegar às telas e estabelecer contato com o público, verdadeiro destinatário de toda obra cinematográfica, estabelecendo acordos que permitissem co-produções entre nossas cinematografias. Viña del Mar 67 permitiu o encontro dos distintos movimentos nacionais; possibilitou conjuntar as realidades dispersas, instituindo as linhas centrais do que se tornaria o movimento Cinema Novo Latino-americano.

Já no começo dos anos 70, nosso mais belo cometa, Glauber Rocha, havia escrito: “nosso cinema é novo porque o homem latino-americano é novo, a problemática é nova e nossa luz é nova, por isso nossos filmes são diferentes. O cineasta do futuro deverá ser um artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo. Queremos filmes de combate na hora do combate”. Isso resumia um estado de ânimo e um momento da História que pode até não ser compartilhada, mas que não pode ser negada, pois, como dizia Shakespeare, podemos discutir os fatos, porém não podemos negá-los.

Com afã de alquimistas, fomos fundindo tendências e culturas para nascermos de novo, não reconstruindo o que o tempo implacável havia apagado, se não criando, a partir da euforia, os traços de uma estética inconclusa, à maneira de Guernica de Picasso, tela estremecida pelos movimentos de uma história que está fora do quadro, que segmenta, isola, une movimentos, fragmentos de pânicos doloridos, cavalos e guerreiros num movimento estremecedor a remexer os sentidos, faz vibrar a alma e rompe os estereótipos, pessoas e máscaras destroçadas pela fúria da História diante do olhar de Deus a iluminar debilmente com a pequena ampulheta.

O novo cinema, e por extensão o latino-americano, foi qualificado desde seu início com o nome e sobrenome conhecido e, por conhecido, errôneo e superficial. Cada país vivia realidades diversas e os cineastas, enquanto cidadãos, tínhamos diferentes opções políticas. Foi assim como este cinema se chamou. Cinema Novo no Brasil, Icai em Cuba, Libertação na Argentina, grupo Ukamau na Bolívia, independente no México, Experimental e Novo Cine Chileno, Terceiro Mundo no Uruguai, Documental na Colômbia, Novo na Venezuela, Cine arte, insurgente, Cine.

Era inegável, sem dúvida, que a possibilidade real de unificação em um movimento político e estético dava-se ao se confrontar pela primeira vez os filmes numa tela que se estendia em nível continental, mostrando coincidências e vontades políticas de mudança e transformação social, como se, de todos os filmes e diferentes geografias, surgissem um só que expressasse, num único golpe de vista, a história de um homem desconhecido: os pobres da América Latina, mil vezes negados pela história oficial, mil vezes truncados em seu desenvolvimento, segregados e negados em seus direitos democráticos, afastados das possibilidades de libertação e igualdade, essenciais em todo o mundo que começava a abrir os olhos para vislumbrar o século seguinte.

Os anos 1960 remexeram o mundo, as ruas da Europa encheram-se de jovens que diziam ser realistas pedindo o impossível, o amor colocou-se como livre, revoluções de adornos e de flores, os grandes festivais da América do Norte, Woodstock, a esfinge do Che olhando o horizonte diante do poder e das burocracias. Era ele o ícone indesmentível de uma geração que tentou tomar o céu de assalto. O mundo nunca mais foi o mesmo depois dos anos 60. O ocidente resistiu, o flexível inclinou-se, mudou como o Leopardo de Lampedusa, para que tudo seguisse igual em sua essência, o socialismo real permaneceu rígido e décadas depois cairia sepultado no esquecimento. Praga foi o início de um terremoto que ainda não cessou de estremecer a Terra. É evidente que ninguém permaneceu indiferente frente aos acontecimentos que remexeram o entorno social, político e cultural de uma humanidade que tentava sair da Idade Média, no caso chamado de Terceiro Mundo, aquele do subdesenvolvimento e do colonialismo cultural.

No campo da estética, buscamos febrilmente nossa localização numa linguagem que expressava esse novo estado de consciência. Precipitamos a apresentação, o desenvolvimento e o desenlace, não precisamente nessa ordem – como disse Godard para definir a nouvelle vague francesa -, na intenção de romper com o cinema dominante das grandes indústrias já globais e imperantes nas telas de todo mundo conhecido.

“A uma técnica sem sentido, opomos a nossa vontade de encontrar uma linguagem própria que nasce da imersão com o enfrentamento de classes. Enfrentamento que produz condutas e formas culturais novas” – afirmávamos os chilenos nas luzes ainda tênues, quase sombras chinesas, de nossos curtas-metragens de dezesseis ou de oito milímetros. E essa busca realizou-se com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça.

“O que queremos é dar um rosto e um corpo ao homem boliviano, porém sabemos que não é suficiente”, afirmava com veemência Sanjines, e mais: “queremos um cinema que reflete a vida boliviana; combate e testemunho”. “Na Colômbia, o cinema deve ser documental”, afirmava Carlos Álvares, um de seus destacados cineastas. Os brasileiros recordavam as palavras de Humberto Mauro, que nos anos 20 havia afirmado como precursor: “A falta de recursos me entusiasma, quem não tem cão caça com gato: confeccione relâmpagos e tempestades usando luz solar, um regador e uma tela negra”.

Estética inconclusa, identidade irresoluta. O caminho é interrompido quando as ditaduras que se instalam no continente desterraram-nos, usurpando signos como a Caim.

A leste do Éden
Recomeçar, sempre de novo, como Sísifo, o herói da tragédia grega, empurrando no grande penhasco até chegar acima da montanha para que, uma vez lá, solte-se até o vale e nos obrigue, com vontade de ferro, a empurrar novamente pelo penhasco da história acima. Esse era e é, ao que parece, o signo destes tempos em que nos tocou viver e lutar, sem um só fotograma que desminta a nossa vocação de artistas comprometidos com o homem latino-americano. Homem ao fim da terra, que é terra da terra de todos os homens e mulheres que buscam nas trevas os traços distintivos do ser. O longo e tortuoso caminho do exílio expande sem dúvidas o olhar.

Durante os anos de exílio, seguimos trabalhando incansáveis. Nosso cinema adquiriu bandeiras, cores diferentes, geografias monumentais, rios profundos. A história americana fluindo como sangue vivo de uma geração, que, sobretudo, buscava expressar a realidade desmesurada de um sonho. O americano do Sul. Sociedades construídas de retalhos, destruições, quedas de grandes catedrais, idiomas enterrados, mundos submersos, diminuídos pelo terror do paraíso perdido. Homens e mulheres vindo em ondas de grandes migrações, unindo sentimentos, sangue, raça, alquimia, cultura, a opção possível por esse continente, como afirmava Wilfredo A. M., plasmando em sua pintura os rasgos africanos de um escravo libertado por fim em outra terra.

Cada geração impõe-se as suas próprias tarefas. Os trabalhos de hoje são distintos, porque os olhos são distintos. Cresceu sem dúvida o olho do Ciclope, multicultural, multirracial. O olho coletivo hoje pode mirar de trás adiante, do sul ao norte, ao mesmo tempo.

Talvez nosso legado seja um fotograma em que se reflita um instante fugidio do século passado. Se assim é, que sirva de testemunho para que os novos cineastas chilenos e latino-americanos prossigam sem trégua a andança e a pós-utopia de um mundo melhor, de uma sociedade mais livre, aspirando ao amor, o sentimento mais democrático e insurgente que conhece o homem. O amor não distingue raças, classes sociais, nacionalidade. Apenas une e desata, criando a contradição e, da contradição, vem o choque de necessidades. A dialética da vida é a única mestra que abre os caminhos da expressão humana.

Audácia, vigor, e mais audácia criativa. Nossa tarefa é deixar um signo no bosque, para que o lenhador encontre os sinais do regresso ao humanismo, à luz, mas luz para deter a barbárie que nos ameaça com o enfrentamento das civilizações e com o enfrentamento do terrorismo com terrorismo, esquecendo-se o diálogo e o bem supremo da tolerância.

Se em 67 e em 69 cineastas e estudantes de cinema tivemos como lema “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”, é hoje o momento de alçar as bandeiras do humanismo e da tolerância.

Jovens cineastas que estão por vir, em algum ponto do tempo esperaremos, plenos de esperança, vossas imagens repletas de nova luz e entusiasmo.

Assim, permita-me, meu caro Arqueólogo do Futuro, que eu termine repetindo as palavras que me fazem mais feliz: câmara, som… Ação!