Governo e entidades discutem transposição do São Francisco
Sociedade civil e governo federal retomaram debates em torno de um tema mais amplo — o desenvolvimento do Semi-Árido. Encontro emergiu de acordo que pôs fim, em outubro de 2005, à greve de fome do bispo dom Luiz Flávio Cappio, de
Publicado 10/07/2006 16:50
O encontro aconteceu no auditório subterrâneo do prédio que abriga o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Foi resultado do compromisso assumido desde a suspensão da greve de fome promovida ao longo de dez dias (26 de outubro a 6 de novembro do ano passado) pelo frei Dom Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra, na Bahia.
Assessor da Casa Civil e coordenador do grupo de trabalho intergovernamental sobre o projeto de integração do Rio São Francisco com as bacias do Nordeste Setentrional — como o governo denomina o projeto de transposição —, Pedro Bertone reconhece que houve erro na forma como a questão foi colocada anteriormente. Agora, ratifica o assessor, a ordem do Palácio do Planalto é a de intensificar o diálogo com base em referências mais amplas, para além da mera obra de engenharia da transposição.
“A obra está integrada a outro projeto maior de desenvolvimento para a região do Semi-Árido. Sem outras ações, como a própria revitalização do Rio São Francisco, a obra deixa de ter sentido”, argumenta. Uma série de outras ações — como o Programa 1 Milhão de Cisternas, a construção de pequenas barragens e a constituição de assentamentos da reforma agrária, entre outros — faz parte desse projeto maior de desenvolvimento do semi-árido, enfatiza Bertone.
Dom Cappio participou dos dois dias de conversa, assim como outras personalidades importantes como Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), de organizações como a Articulação do Semi-Árido (ASA) e movimentos sociais com forte atuação no Nordeste.
“O encontro foi bastante esperançoso. Pela primeira vez, a sociedade civil está sentada ao lado do governo para discutir não só a questão da obra, mas as possibilidades de ações para o povo que vive no semi-árido”, define. Para ele, a primeira oficina — que se desdobrará em encontros posteriores com as populações das regiões envolvidas — teve o mérito da transparência. “Cada um disse o que pensa. Essa é a principal senha para se debater pontos divergentes com clareza e objetividade”, assinala, ressaltando que os acordos que emanarem da interlocução reativada ainda precisam ser cumprido “para que não sejamos apenas instrumentalizados”.
O religioso identifica o início de um movimento importante de esclarecimento dos pontos de concordância e divergência entre os atores sociais. “Eu quero acreditar no processo. Esse primeiro encontro não foi importante apenas para o diálogo da sociedade civil com o governo. Foi importante também para o diálogo do governo com setores do próprio governo”.
Depois de muita conversa, foram definidos três grandes grupos de trabalho temáticos — disponibilidade hídrica, revitalização do Rio São Francisco e projetos de desenvolvimento no semi-árido. Esses espaços devem ter participação paritária entre integrantes do governo e membros da sociedade civil. Uma comissão formada por 12 representantes de entidades civis e das pastas ligadas ao tema deve marcar uma nova reunião nos próximos meses, antes da agenda pública de debates locais.
Entre os povos indígenas, a mobilização de resistência à obra de transposição nunca esmoreceu, relata Marcos Sabaru, do povo Tingui-Botó, de Alagoas. “Começa na Ilha de Assunção, onde vivem os Truká, e une diversos povos como os Tumbalalá, os Tinguis. etc.”. Para Sabaru, o diálogo foi reaberto pelo governo por causa do calendário eleitoral: para não contrariar indígenas, pescadores, quilombolas, setores da Igreja Católica e diversos outros segmentos que são contra o projeto. “Mas também é importante ouvir as pessoas. Aqui é só conversa. Se tiver validade, tem que aparecer em atos”.
Para Luiz Carlos da Silveira Fontes, coordenador do Baixo São Francisco do CBHSF e professor do Departamento de Engenharia Agronômica da Universidade Federal de Sergipe (UFS), a rodada inicial de conversas reabre espaço para questões que haviam sido perdidas: o debate sobre a gestão das águas do Rio São Francisco e a definição da ordem de prioridades dos investimentos públicos.
Nos próximos dias 13 e 14 de julho, o CBHSF realiza a sua décima plenária na cidade de Aracaju, em Sergipe. Serão analisados temas relevantes ligados à gestão das águas como a criação da agência do Rio São Francisco, prevista ainda para este ano, e a implementação da cobrança pelo uso das águas da bacia, planejada para 2007.
Bertone, da Casa Civil, admite que o governo está disposto a recolocar na mesa as diferenças de destinação da água: uso para consumo humano ou uso econômico. O plano de gestão da Bacia do Rio São Francisco, aprovada no âmbito do CBHSF depois de um processo longo de consultas públicas, não descarta em absoluto a transposição, desde que seja limitada e exclusivamente para consumo humano. “Neste primeiro momento, não houve tentativa de imposição do governo federal. Ainda não podemos, porém, antecipar o que vai dar no final”, observa Fontes. “Mas está claro que a imposição é o pior caminho. Perpetua o conflito”.