Francisco Carlos Teixeira: “O sorriso de Condoleeza Rice”

“Condi” Rice preferiu tocar piano enquanto Beirute era bombardeada. Tal desprezo pela vida humana nem mesmo é original: um outro governante já tocara lira enquanto outra cidade queimava…Sempre sorridente, abriu os caminhos para o mass

Enquanto milhares de bombas abatiam-se sobre as cidades e vilas do Líbano, e outros tantos foguetes sobre Haifa e Tiberíades, a Secretaria de Estado dos Estados Unidos, contrariando mais de 40 anos de tradição diplomática americana, afirmava que um cessar-fogo “ainda não era possível ou mesmo necessário”. De forma claramente maquiavélica – visando dar tempo a estratégia de Israel em aniquilar qualquer adversário regional com poder de fogo – “Condi” Rice afirmava, entre sorrisos gentis, que a violência representava “as dores do parto do novo Oriente Médio democrático”.



Pouco depois, no domingo 30 de julho de 2006, bombas israelenses matavam dezenas de refugiados, mulheres e crianças, em Qana, sul de Tiro.




Medo e Desesperança em face da ausência de lideranças!


 



Há quase vinte dias um pequeno país, dinâmico e tolerante, multi-étnico e multicultural, com uma democracia em plena construção, é atacado impiedosamente por um país – também democrático – sem qualquer ação concreta das grandes potências ou da ONU.




A guerra de Israel contra o Líbano – muito mais do que uma guerra contra o Hizbollah – é o produto de uma longa exasperação, cansaço e inabilidade de uma nova elite dirigente que chegou ou poder em Tel Aviv em 2005. Ansiosa para dar provas de ser tão capaz de defender o país como foram as gerações anteriores, procuraram um estratégia unilateral e de confronto militar para resolver “em definitivo” o conflito regional. Para isso contaram, desde sempre, com o beneplácito da Secretária de Estado “Condi” Rice, em evidente contradição com a diplomacia americana para a região.




As negociações diretas com as partes envolvidas foram descartadas: não havia ninguém “do outro lado” para negociar. Assim, descartou-se Yasser Arafat, Mahmud Abbas, o presidente democraticamente eleito da Palestina e, enfim, o Hamas – partido cuja vitória é resultante da própria ausência de esperanças para uma saída negociada do conflito. Da parte de Tel Aviv, era, e ainda é, uma disposição clara de escolher com quem negociar, descartando qualquer liderança representativa do adversário. O que não se percebia – desde a retirada unilateral e sem negociações de Gaza – é que a cada ação israelense contra as lideranças palestinas, gerava novas lideranças – ainda mais ferozmente nacionalistas. Israel exige uma situação ímpar em termos de resolução de conflitos: quer a paz para negociar a paz. Nos conflitos modernos – Coréia, Vietnã e no próprio Oriente Médio – mantiveram-se longas conversações de paz durante duras ações militares, como durante as conversações de Paris para o fim da Guerra do Vietnã. Neste caso, esquece-se que a paz se negocia entre inimigos… Amigos não precisam de acordos de Paz!




Mas, a grande diferença – nos casos anteriores – era a existência de lideranças regionais poderosas e da mediação dos Estados Unidos, desejosos de evitar uma escalada e um conseqüente aumento da influência da ex-União Soviética na região. O fim da Guerra Fria (e da URSS) alterou profundamente o quadro. Ainda Clinton tentou mediar o conflito, mas com a chegada de Bush e seu pessoal político ao poder, deu-se carta branca a Israel para uma resolução militar do conflito.




11 de Setembro e a Política Norte-americana!


 


 



Os atentados terroristas de 11/09/2001, contra os Estados Unidos, aprofundaram este estado de coisas: somou-se ao conflito regional no Oriente Médio – cujos principais termos são demográficos, territoriais e de definição de fronteiras – um conflito global, quase civilizacional (no entendimento fundamentalista de ambas as partes) dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda.




Veio então a aventura americana no Iraque, em 2003. A guerra rápida e popular transformou-se num massacre contínuo, com 100 mortos civis por dia, um país destruído e o barril de petróleo a US$ 80,00.




Ainda assim a liderança neoconservadora em Washington continuou a acreditar na capacidade de forjar a democracia e a tolerância através de bombardeios de mísseis Tomahawk, de prisões ilegais e de tortura contra prisioneiros. Trata-se do maior crime de malversação de princípios da História da América: todas as idéias básicas sobre direitos civis foram abandonadas e a própria Administração Bush tratou de subverter as regras do direito internacional, das noções de direito humanitário e de direitos civis.




Ao invés de aconselhar comedimento e impor um cessar-fogo que levasse a negociações – como todas as vozes responsáveis no mundo exigiam, incluindo-se aí o Conselho de Segurança da ONU – “Condi” Rice distribuía sorrisos pelo Oriente Médio e Ásia, afirmando continuamente que “ainda não era o momento de um cessar-fogo”.




Quantos deveriam morrer para ser momento “adequado” do cessar-fogo? O grave é a irrupção, por detrás da inércia calculada dos Estados Unidos, da clara concepção de Bush&Rice sobre as relações internacionais: ao afirmar que não se poderia aceitar um cessar-fogo antes da alteração das condições políticas, Rice – subvertendo a máxima de Clausewitz – colocava a guerra como primeira opção, como forma básica de moldar as relações internacionais e alcançar objetivos políticos. Descartavam-se assim as negociações, o cessar-fogo humanitário e a intervenção da ONU. No caso desta entidade a estratégia era mais macabra: com auxílio do embaixador dos Estados Unidos na instituição – nomeado por puro escárnio! – tratava-se de desacreditar de vez a instituição e substituí-la pela OTAN, sob controle dos EUA.




A estratégia de Israel: erro trágico!


 


 



Para a nova geração de dirigentes de Israel, nascidos na sombra poderosa de “Arik” Sharon era necessário provar sua capacidade para dirigir o país. O recurso a guerra foi encarado como o meio único capaz de garantir a segurança do país. O grau de ansiedade, disfarçado em dinamismo econômico e social, é mal encoberto pelas centenas de jovens, militares ou civis, armados nas ruas de Jerusalém, Jaffa ou Tiberíades.




São cafés, táxis, restaurantes, shoppings e até cinemas onde fuzis e metralhadoras portáteis fazem parte do dia-à-dia da sociedade. O país encontra-se dividido em vários sentidos: religiosos e ultra-religiosos, estes com suas roupas negras, chapéus e cachos de cabelo; bairros inteiros dedicados a sua residência, sempre solicitando “prudência” no vestir dos não-ortodoxos. Existem ainda as claras divisões entre militares, diplomatas e acadêmicos. Na universidade de Haifa, numa reunião com especialistas em relações internacionais, era notório o descrédito com a diplomacia americana de “reformatação do Grande Oriente Médio”, conforme os neo-conservadores americanos, e a enfeudação da política israelense a esta concepção ultra-reacionária. Para estes acadêmicos o governo de Israel erra ao seguir o lobby judaico norte-americano – mais conservador e radical do que a própria ala conservadora estabelecida em Israel. Para os professores em Haifa, e também na Universidade Hebraica de Jerusalém, é o momento de cessar toda a intervenção nos países árabes, incluindo-se aí a Palestina, negociar o estatuto de Jerusalém e obter uma paz duradoura e digna para todos.




Não estão só: organizações de direitos humanos resistem e denunciam as prisões em massa por parte dos israelenses, os programas de assassinato seletivo e os métodos de interrogatório de prisioneiros. Agem, também, de forma direta na assistência de homossexuais palestinos, recolhidos e abrigados, ante a ameaça de morte sumária.



De qualquer forma, o medo é disfarçado por uma ansiedade constante, por um fazer obsessivo. Sob a pátina psicológica funciona uma sociedade muito dinâmica, com debates intensos e heterodoxos, como o debate iniciado na Universidade Hebraica de Jerusalém pelos chamados “novos historiadores”. Um grupo de pesquisadores que negam a versão, até então canônica, sobre a fundação de Israel: “Um povo sem terra para uma terra sem dono”. Na verdade, tais historiadores israelenses mostram que centenas de milhares de palestinos foram expulsos de seus lares durante a “Nakba” (“O desastre”, a expressão em árabe para a derrota na Guerra de Independência de Israel de 1948).



Tais debates e dissidências, no interior da sociedade israelense – tão distante de sociedades fechadas e intolerantes como a saudita ou iraniana – mostram a força da tolerância e da democracia. O terrível equívoco – na verdade um erro histórico de grave dimensão – foi a elite política israelense – órfão da aterradora, por sua força e história, imagem de Arik Sharon – querer mostrar sua capacidade para fazer a guerra em vez de negociar.




Escolheu-se, sob o impacto do seqüestro de jovens soldados, a resposta musculosa, dura e impiedosa. Casas, infra-estrutura, pessoas, tudo pode ser alvo no Líbano. A segurança de Israel tudo justifica. O grave neste momento é que a única força capaz de levar a uma intermediação, capaz de negociar a minimização do drama social faltou ao encontro: “Condi” Rice preferiu tocar piano enquanto Beirute era bombardeada. Tal desprezo pela vida humana nem mesmo é original: um outro governante já tocara lira enquanto outra cidade queimava…


 




Destruindo a ONU!


 


 



A ONU, através do seu Conselho de Segurança, a França, a União Européia e os aliados árabes dos Estados Unidos, tais como a Arábia Saudita, Egito e Jordânia, exigiam o cessar-fogo e advertiam para o impacto da destruição do Líbano e de sua democracia para as grandes massas do Oriente Médio. Egito e Arábia Saudita advertiam Rice de que não seria bem vinda, cancelando suas passagens pelo Cairo e Riad.




A ação do Departamento de Estado americano, leia-se ainda uma vez, “Condi” Rice foi de entravar todas as negociações: vetou as ações da ONU e desconsiderou o envio de uma força de paz para a região. Ao contrário, endossou a exigência de Israel de que só admitiria – no território do Líbano! – uma força da OTAN, tripudiando assim da missão universal da ONU e assumindo, ainda uma vez, a política de desprestigiar a entidade. Como se não bastasse uma série de ataques atinge a própria ONU, mata seus funcionários e impede suas atividades na região. Apesar de todos os protestos em menos de uma semana mais um posto da ONU é atacado… A instituição estava sendo expulsa da região… Aos protestos dos membros do Conselho de Segurança, o embaixador dos Estados Unidos, o notório belicista e anti-ONU ativista John Bolton, impunha seu veto a qualquer condenação ao governo de Israel. Enquanto isso, na suas idas e vindas para Tel Aviv, “Condi” Rice, toda sorrisos, continuava a afirmar que não era o momento para o cessar-fogo ou para negociações. Incentivava-se, assim, a nova liderança israelense a continuar os ataques contra o Líbano.




Abriam-se os caminhos para Qana…


 



Olmert, ainda em 27/07/2006, anuncia a convocação de três divisões de reservistas – cerca de trinta mil homens e no domingo, dia do trágico ataque contra Qana, afirma precisar ainda de “14 ou 15 dias de ações militares”. Olmert estava, e ainda está, numa encruzilhada: Israel foi atingido, seu exército obrigado a uma luta corpo-à-corpo e seus objetivos não foram alcançados: por trás da insistência contra o cessar-fogo mal ocultava-se uma ação de envergadura contra o Vale do Bekaa, centro de gravidade do Hizbollah. Por esta razão “Condi” Rice não podia aceitar o cessar-fogo… Nem mesmo o cessar-fogo de 72 horas para fins humanitários proposto pela ONU e que teria salvo mulheres e crianças em Qana.




Olmert e seu adjunto, Peretz, não são a continuidade da elite dirigente israelense. Mesmo com toda sua postura belicista os grandes líderes militares de Israel – de Moshé Dayan até Arik, passando por Begin – sempre negociaram e sempre viram a guerra como a última opção de defesa de Israel.




Olmert e seu gabinete optaram primeiro pela guerra. Foram provocados a isso? É muito possível… Os seqüestros foram uma forma de trazer Israel para a cena principal, exatamente quando o mundo inteiro focalizava seus sinais de alerta sobre o Irã. Assim, do ponto de vista da propaganda e da política, Israel substitui o Irã como alvo das atenções mundiais, aliviando a pressão mundial sobre Teerã. É neste sentido que se pode fortemente duvidar da sabedoria – já que não é possível duvidar da justiça, esta totalmente ausente! – dos ataques maciços de Israel sobre o Líbano ( muita além dos pontos de apoio do Hizbollah). Contudo Israel nunca quis negociar o território das “Fazendas Chebaa” ocupadas e pertencentes ao Líbano ou a libertação de prisioneiros libaneses, fornecendo combustível para o radicalismo local.




Houve um erro de cálculo, um trágico erro e, ao fim, quem paga com sangue é o povo de Beirute e Haifa, entre todos os demais, que deverão ainda pagar por este erro. Comparemos com a Índia: foi atingida, dias antes de Israel, por uma série de atentados à bomba em seu principal centro financeiro e comercial. A organização terrorista abrigava-se no Paquistão… Delhi agiu com prudência, com meios policiais e de inteligência e mantém-se aferrada uma política de negociações diretas com Islamabad.

A responsabilidade dos Estados Unidos!



Onde então nasceu a inacreditável estratégia de Olmert e Peretz? Nasceu diretamente da concepção norte-americana de Guerra Global contra o Terrorismo. Nasceu de um grave erro de envolver, até às raízes, a política anti-terrorista dos EUA com o conflito regional no Oriente Médio, transformando a crise regional num conflito global, civilizacional e religioso.



Alguns pontos básicos, apontados por especialistas mundiais, deveriam ser considerados em Tel Aviv. Em primeiro lugar, em vez de seguir os passos dos neoconservadores, judeus ou não, bem estabelcidos em Washington – tão longe de Haifa e Beirute, Israel deveria dedicar-se à resolução do conflito regional, esforçar-se por manter o conflito nos limites do Oriente Médio, ou menor ainda. Em seguida voltar-se para uma solução global do conflito, abandonar de vez – por falência total! – qualquer política passo à passo para a paz na região e negociar com todos os envolvidos uma solução definitiva.




Tal solução deve envolver os territórios e as colônias; fronteiras seguras e definidas; o fornecimento de água e de livre circulação… Cabe aos Estados Unidos, um xerife relutante apenas em estabelecer a justiça, convocar e impor as decisões negociadas e aos países árabes – entupidos de petrodólares – financiar a reconstrução da Palestina e do Líbano.




Contudo, caso “Condi” Rice, embalada pelas pesquisas de opinião que a consideram candidata natural à presidência dos Estados Unidos, prefira tocar piano e distribuir sorrisos em conferências internacionais, teremos mais mortes e sofrimentos.


 


Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de Historia Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Artigo publicado originalmente no site da Agência Carta Maior