Bresser Pereira: Doha, derrota ou vitória?
Por Bresser Pereira*
Ao contrário do que se afirmou, a suspensão e virtual fracasso da Rodada Doha decidida na última semana representou antes uma vitória do que uma derrota para o Brasil. O ideal seria que o Brasil houvesse logrado uma grande redução
Publicado 02/08/2006 10:47
A diplomacia brasileira, associada à da Índia, foi capaz de definir e defender os interesses dos países em desenvolvimento. E porque os Estados Unidos não se dispuseram a reduzir seus subsídios de forma aceitável.
Não era difícil prever que os países ricos não cederiam. Embora não tenham mais a posição de força que tinham na Rodada Uruguai, seu objetivo era ganhar, como ganharam naquela rodada da primeira metade dos anos 90. Naquela época, aproveitando da fraqueza dos países em desenvolvimento, muitos dos quais haviam sido vítimas da crise da dívida externa, e fortalecidos pelo auge da ideologia neoliberal após o colapso da União Soviética, lograram reduzir drasticamente o espaço de políticas econômicas dos países em desenvolvimento, enquanto mantinham a possibilidade de subsidiar sua própria agricultura e impunham direitos de propriedade intelectual que só os beneficiava.
Conjuntamente com a notícia da suspensão da rodada, a OMC (Organização Mundial do Comércio) publicou seu “Relatório Anual” de 2006. Pura mas significativa coincidência! Segundo o relatório, os países ricos, que, por meio do seu “soft power”, impõem-nos uma ortodoxia convencional fundamentalista de mercado, são responsáveis por 80% dos subsídios concedidos no mundo. Subsídios principalmente à agricultura, mas também à indústria. Enquanto seus ideólogos diabolizavam qualquer subsídio, impedindo assim que os países em desenvolvimento realizassem política industrial, eles próprios continuavam e continuam, sob o manto protetor da OMC, a fazer suas próprias políticas de intervenção nos preços. Entre os países em desenvolvimento, o principal que não se curvou foi a Índia: não é por acaso que tem tido tanto êxito econômico.
É verdade que o Brasil colocou suas esperanças na OMC. Quem, entretanto, estava contando com o êxito da Rodada Doha era o mundo rico. Denominaram-na “Rodada do Desenvolvimento” e, por meio de uma de suas agências, o Banco Mundial, não hesitaram em fazer cálculos astronômicos dos ganhos que essa rodada lograria para os países em desenvolvimento. Revelando a irresponsabilidade envolvida no uso do modelo de equilíbrio geral, as primeiras estimativas importavam em ganhos superiores a US$ 1 trilhão, as últimas giravam em torno de US$ 200 bilhões… Em síntese, jogaram todo o seu “soft power”, toda a sua hegemonia ideológica em cima dos países em desenvolvimento. Fracassaram, perderam. Se pensarmos em termos ideais -do que poderíamos ganhar-, o Brasil também perdeu, mas ganhou se formos realistas.
Diante do fracasso de Doha, dizem-nos que sobra a alternativa dos acordos bilaterais. Sem dúvida, mas tudo depende da qualidade do acordo. O Chile, que nos anos 90 foi o único país que apresentou boas taxas de crescimento na América Latina, foi também o único que impôs controles efetivos contra a entrada de capitais especulativos, conseguindo assim defender sua taxa de câmbio. Há pouco mais de um ano, assinou um acordo bilateral com os Estados Unidos, cuja primeira cláusula nada tem de comercial: proíbe o Chile de voltar a impor controles de entrada de capitais. Depois disso, a taxa de câmbio vem se apreciando fortemente naquele país e não é difícil prever uma substancial diminuição do desenvolvimento econômico chileno nos próximos anos. Como não nos interessa fazer acordos multilaterais lesivos aos nossos interesses, também não interessa fazer acordos bilaterais como esse assinado pelo Chile.
* Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia, é autor de ” As Revoluções Utópicas dos Anos 60″; artigo tomado da Folha de S. Paulo